terça-feira, 25 de novembro de 2008

O Doutor Bombeiro

— O Doutor Bombeiro?!...Não, não, não, não. Claro que não. Era o que mais faltava — vociferou com uma cara de pânico nunca vista anteriormente.

— Mas não o quê, Sr. Presidente da Junta? — Questionou a secretária, D. Ermelinda, com um ar atónito.

— Aturar o Doutor Bombeiro?!... Nunca, jamais, rien de rien, e dou-vos um grande conselho : fujam todos e rápido.

A porta estava entreaberta, pois D. Ermelinda, no seu habitual entra e sai no gabinete do Presidente da Junta de Freguesia de Ratazanas de Baixo, raramente a fechava. E por isso não foi de estranhar, que estando o Presidente em pânico com a presença do Doutor Bombeiro, o próprio metesse a cabeça porta adentro e como quem quer a coisa tenha dito:

— Olá, Senhor Presidente, está bem disposto? Não me diga que não me quer receber...Seria uma pena que isso acontecesse...

— Doutor Bombeiro, — cumprimentou o Presidente da Junta, mudando rapidamente de expressão e ficando de repente muito simpático e acolhedor — que prazer em vê-lo. Claro que irei recebê-lo. É um prazer enorme a sua presença neste gabinete. Peço-lhe apenas dois minutinhos, para arrumar alguma papelada.

— Papelada? Que papelada? — Questionou D. Ermelinda, que já não estava a perceber nada.

Como resposta recebeu uma brutal pisadela do Presidente, o que a levou a soltar um enorme grito, que ecoou pelo edifício adentro.

Doutor Bombeiro piscou o olho ao Presidente e recolheu-se ao corredor, esperando pacientemente.

O Presidente sabia que não podia recusar receber tal individualidade, sobretudo porque tinha a consciência de que tinha ganho as eleições graças a um disparate do Doutor Bombeiro. Durante a campanha eleitoral, o principal adversário do actual Presidente estava na praça principal, completamente apinhada de gente, a fazer o discurso e a prometer uma grande surpresa para o fim do discurso. Naquela altura, Doutor Bombeiro, que ainda exercia o seu voluntariado no quartel dos bombeiros, tinha recebido uma chamada para um fogo urbano. Ao enfiar-se com o carro nas ruelas estreitas e tendo-se enganado, foi parar ao centro da praça. Como não conseguia andar nem para trás nem para a frente, face à multidão espalhada, não teve meias medidas: puxou da agulheta principal e toca a varrer as pessoas a jacto de água. A maioria das pessoas associou esta situação à surpresa anunciada (que na verdade era um trio musical feminino), e como não acharam piada nenhuma ao facto de irem para casa todos ensopados, vingaram-se nas urnas, e o actual Presidente, que ninguém conhecia de lado nenhum, acabou por ganhar as eleições, como diz o povo, “sem saber ler nem escrever”. Era esse o favor que ele ainda devia ao Doutor Bombeiro, que após essa situação foi naturalmente convidado a dar de “frosques” e abandonar a corporação de bombeiros local.

Doutor Bombeiro, na prática, é aquilo que habitualmente se chama, na gíria popular, uma figura cromática, que deriva da palavra cromo, que quer dizer, na prática, uma espécie de palerma. Gerado e criado ao Deus-dará, cedo deixou a escola com um recorde invejável de raposas, de fazer inveja a qualquer caçador que se preze.

Sem eira nem beira, acabou por se acolher e ser acolhido no quartel dos bombeiros locais, coisa aliás habitual, não fosse a corporação uma associação humanitária.

E aí começou uma prodigiosa carreira, tendo atingido a lugar de chefe em tempo recorde. Este posto, naturalmente, foi mais atribuído tendo em conta a sua dedicação e disponibilidade do que propriamente a sua competência e capacidade, o que também parece que é comum na corporação.

É claro que este tipo de promoções, feitas com este critério, haveriam de dar resultados a curto prazo.

A começar pelo nome, Doutor Bombeiro. Foi-lhe aplicado pelo pessoal que trabalha no hospital local. Era costume o Doutor Bombeiro entrar pelas urgências com um sinistrado e dar logo instruções ao médico que estava de serviço, do género:

— Eh pá, o melhor é espetar talas neste gajo todo, pois, c’um camano, o gajo está todo partido. Nem um osso se lhe aproveita.

Ou então era costume tratar o pessoal do hospital assim:

— Caros colegas, se não fosse eu a arranjar matéria-prima, vocês passavam o tempo todo a coçar a micose.

Rapidamente ficou baptizado com o nome que ainda perdura.

No quartel as coisas também não eram diferentes.

Um dia, numa altura em que foram instalados em todas as ambulâncias meios de comunicação, Doutor Bombeiro assim que ia fazer algum serviço, ia sempre a falar com a central:

— Daqui AM 1, transmita.

E a malta da central respondia:

— Ouve lá pá, transmita o quê? Vê lá se te calas.

— Então transmito eu. Dentro de algum tempo, não sei bem quando, estarei aí. Cumprimentos ao pessoal todo.

Até que um dia aconteceu uma que foi devidamente registada no grandioso livro da bombeirada “O Gralhómetro”.

Tendo recebido um telefonema a solicitar uma ambulância na estação do caminho de ferro, porque ao que parece um indivíduo decidiu medir forças com um comboio, ou como diz o povo, “foi marrar com um comboio”, Doutor Bombeiro arrancou do quartel a grande velocidade, como é apanágio da cultura bombeiral, e como sempre, agarrado ao rádio a comunicar com a central. Depois de recolhido o corpo, vinha em direcção ao hospital, quando os colegas da central, ansiosos para saber algum pormenor sobre o acontecimento, pela primeira vez, (diga-se de passagem), lhe perguntaram, via rádio, por pormenores do acidente.

E o Doutor Bombeiro tem a seguinte resposta:

— Eh pá, ainda bem que vocês não apareceram por lá, o comboio estava parado a uns bons cinquenta metros do local, e o resultado é o seguinte: transporto um cadáver em estado muito grave, muito grave mesmo.

Outra vez, numa altura de instrução aos candidatos a bombeiros, que são apelidados pelo sugestivo nome de “maçaricos” aconteceu o seguinte:

Doutor Bombeiro estava encarregue de falar sobre materiais perigosos em matéria de combustão, e decidiu exemplificar com um bocado de gasolina num copo de vidro. Acendeu aquilo e logo houve uma pequena explosão que obrigou Doutor Bombeiro a largar o copo. A gasolina, a arder, espalhou-se pelo chão da sala, que por acaso até era de madeira. Ou seja, rapidamente surgiu um fogo em pleno quartel dos bombeiros. Como a “maçaricada” ainda não sabia apagar fogos, porque estava a aprender e nesse dia não aprendeu nada, ou melhor, aprendeu a fugir rapidamente do local, foi necessário tocar a sirene e chamar reforços. Passado um bocado era ver a malta a correr em direcção ao quartel, todos vermelhos do esforço de chegar depressa e perguntar:

— É fogo “adonde”?

— No quartel.

— Em qual quartel?

— Neste, porra!...

— Ah, também me parece, cheira aqui tanto a fumo, c’os diabos.

E então vestiam rapidamente a farda de combate a incêndios, e como estavam tão habituados a esta rotina, de seguida enfiavam-se dentro dos carros. Depois ouviram-se gritos do Doutor Bombeiro a mandar sair o pessoal dos carros, que os carros não precisavam de se deslocar, porque o fogo era ali, no quartel, e eles tinham era de pegar nas mangueiras e por aí fora.

Já aí a coisa esteve tremida, face aos avultados prejuízos provocados. Mas como se tratava de um chefe, apesar de ser uma figura cromática, a coisa passou.

Acabou, como já disse, quando decidiu substituir a fonte local na campanha eleitoral.

Só e abandonado, que é como toda a gente se sente depois de abandonar uma organização, após ter passado por lá vários anos, decidiu a sua sorte a solo. Entre várias sugestões de amigos, e depois de estudar muito bem a situação, optou por comprar em décima oitava mão um carrinho de fazer pipocas, e dedicar-se de alma e coração à actividade empresarial. Passou uma semana a pintar e a modernizar a maquineta, pois o marketing era necessário, e graças ao seu insucesso escolar, conseguiu colocar um cartaz no topo da carripana, que dizia o seguinte: “Mánica de Pipóicas”. E mandou fazer na tipografia uns panfletos para distribuir a quem comprava pipocas, que além de ter a sua fotografia estampada, tinha o seguinte slogan : “Coma pipóicas do Doutor Bombeiro e seja feliz sem dinheiro”.

Começou então a calcorrear todas as terras, vendendo pipocas e tentando esquecer toda a sua existência anterior.

O pior é que o bicho bombeiral não o largava. Quando tocava a sirene, Doutor Bombeiro nem pensava duas vezes. Estivesse ou não a aviar pipocas, largava tudo e desatava a correr.

Chegou a estar a vender pipocas numa terra a cem quilómetros da sua, quando um dia começou lá a tocar a sirene desenfreadamente. Deveria ser coisa grave, pois claro. Doutor Bombeiro começou de imediato a correr, atrás dos outros que via passar em direcção do quartel. Quando lá chegou, (e como tinha sido chefe na sua corporação, e estas coisas não se esquecem de um dia para o outro), começou logo aos berros a dar ordens. De repente calou-se, pois via toda a gente a olhar para ele de forma muito séria. De nada valeu explicar que tinha sido chefe de bombeiros na corporação das não sei quantas. Teve que fazer o percurso inverso à mesma velocidade, se não mesmo superior.

Com este tipo constante de abandono da carripana das pipocas, mais tarde ou mais cedo tinha de ter um desgosto, pois claro.

Um dia tocou a sirene e mais uma vez, inconscientemente, lá arrancou para o quartel, deixando o carrinho desamparado no meio da rua. Quando regressou, o carrinho tinha desaparecido. Doutor Bombeiro nem queria acreditar. Como era possível tal acontecimento? Fartou-se de andar á procura, correu a terra de lés-a-lés, e quando já estava prestes a desistir, caia já a noite, para sua admiração, vê o carrinho ao longe, no meio de um acampamento de ciganos, onde a miudagem se divertia a tentar pôr a funcionar a maquinaria milagrosa que transformava milho que eles próprios davam às galinhas, naquelas coisas fofas e doces que eram o delírio da miudagem.

— Então, mas o que é isto? Quem vos deu ordem para roubar a minha carripana? — Gritou Doutor Bombeiro, exasperado com a situação.

Apareceram logo meia dúzia de ciganos corpulentos, que se dirigiram de imediato para o pé de Doutor Bombeiro.

— Ai mãe, qué quele diz? — Perguntou um cigano.

— Ai Lello, tá incomodando as crianças, tu nã vês? — Respondeu outro cigano.

Doutor Bombeiro apercebeu-se que a coisa podia complicar-se, pelo que decidiu usar toda a sua diplomacia para que as coisas corressem bem.

— Com que então a tentar fazer pipocas, não é? — Disse. — O problema é que esse carrinho é meu e só eu é que sei pô-lo a funcionar. O melhor é vocês devolverem-mo, o que acham?

— Ai mãe, Lello, qué quele diz? — Perguntou outro cigano, com um aspecto de ser o chefe. — Antão ele nã precebe que nós tamos habituados a que nos dêem tudo? Se nos dão casinhas, nos dão rendimento mínimo, nos deixam conduzir sem carta, antão nã podemos ter uma maquineta de pipoicas?

— Ah, mas se o problema é esse, eu tenho já aqui uma proposta — retorquiu Doutor Bombeiro, antes que a coisa azedasse.

E começou a conferenciar com a ciganada toda e chegou a um acordo. Ficou toda a noite a fazer pipocas, de borla, para todo o acampamento, e ao princípio da madrugada conseguiu pisgar-se sorrateiramente, enquanto os ciganos ressonavam a uma só voz à volta da fogueira.

De regresso ao seu poiso, ia pensando que, de verdade, ser vendedor de pipocas era uma actividade de grande risco. Tinha de pensar noutra alternativa.

E foi assim que ele apareceu nas instalações da Junta de Freguesia. Entendeu que era altura de cobrar o favor que tinha feito na altura das eleições, embora sem intenção. Tinha sido um acidente de percurso. O que é certo é que o actual Presidente de Junta, sem ter feito por isso, ganhou as eleições à sua custa, ou melhor, à custa da sua imbecilidade, e ele, o autor da proeza, foi escorraçado da corporação. Não é justo, não senhor. O senhor Presidente da Junta não tem o direito de ser o único a ter proveito duma situação, para a qual não contribuiu com nada. Portanto, no mínimo agradecesse e reconhecesse o feito inédito executado pelo Doutor Bombeiro. E era isso exactamente que ele, Doutor Bombeiro, iria exigir de Sua Excelência.

No meio do corredor, aguardava serenamente a reunião, quando viu sair D. Ermelinda com um ar muito estrambólico, a olhar muito séria para ele (poderia dizer-se apavorada), passando com as costas encostadas à parede de frente e a dizer baixinho:

“Por favor, não me faça mal, eu sou boa pessoa, nunca prejudiquei ninguém, e além disso tenho família que depende de mim, pelas cinco chagas de Cristo, tenha piedade de mim”.

Doutor Bombeiro ficou ainda mais apalermado do que o costume ao ver a atitude de D.Ermelinda.

— A mulher está completamente ché-ché, chalupa da mona, avariada do capacete, de certeza. — Pensou. — Pode ser que seja internada, entretanto, o que pode significar que a lugar dela esteja disponível cá para o je. Não me importava nada. Pressinto que hoje é o meu dia de sorte.

Ouviu-se então a voz trémula do Presidente da Junta a solicitar a presença de Doutor Bombeiro:

— Caro Doutor Bombeiro, seja bem vindo ás minhas humildes instalações. Só lhe peço que seja breve, porque ainda tenho que fazer umas visitinhas pela freguesia.

— Ó senhor Presidente, eu levo o tempo necessário que o senhor precisar para me ajudar, pois é disso que se trata. Preciso da sua ajuda, como o senhor já precisou da minha. À minha custa o senhor hoje é Presidente da Junta e eu fui corrido dos bombeiros, pelo que lhe venho pedir que me arranje um tacho num sitio qualquer, como forma de me compensar, o que acha?

— Meu caro Doutor Bombeiro — começou a falar de forma trémula o Presidente — isso não é fácil. Por mim, eu arranjava-lhe já qualquer coisa, só que não depende de mim. Como sabe...

— Ah, deixe-se lá de tretas, Presidente — atalhou Doutor Bombeiro — todos sabemos como esta coisa funciona. Já que está com alguma dificuldade de imaginação, eu vou lembrá-lo, vou-lhe dar uma pista: nomear-me o grande Director Geral do S.C.A.S.C.I.D.J.F.R.B.

— O Quê?! Meu Deus, mas disparate é esse? — Balbuciou o Presidente — Mas como é que disse?

— S.C.A.S.C.I.D.J.F.R.B., c’um camano — disse irritado Doutor Bombeiro — Seria um novo departamento, a ser criado por si, veja lá como as pessoas ficavam a admirá-lo pela enorme capacidade de desenvolver esta terra, onde eu seria o Director Geral.

— Mas o que é isso quer dizer? — Perguntou o Presidente.

— Então, está-se mesmo a ver. — falou Doutor Bombeiro — Quer dizer : Serviços Competentes de Análise Social e Comportamento Intra-Desviados da Junta de Freguesia de Ratazanas de Baixo.

— Preciso de um copo de água, com urgência — disse o Presidente, já muito amarelo e a sufocar de tanto nervosismo.

— É claro que para o cargo só alguém com um nível de cultura geral como eu terá capacidade para ser Director Geral — reafirmou com muita convicção Doutor Bombeiro. — Quer ver? Por exemplo, o senhor Presidente sabe qual é a velocidade da luz?

— Anh! O quê? Como? Meu Deus... — falava trémulo o Presidente.

— Trezentos mil quilómetros por segundo — falou Doutor Bombeiro, entusiasmado e convencido que estava a ser fantástico e persuasivo. — E sabe qual é a distância média da Terra ao Sol?

— Ai, minha Nossa Senhora me acuda... — balbuciou o Presidente.

— Qualquer coisa como cento e quarenta e nove milhões e meio de quilómetros. — Disse em voz alta Doutor Bombeiro. — E já agora, qual é a distância da superfície da Terra ao centro?

— Ai, ui, ai, ui, ai, ui... — eram as únicas palavras ditas pelo Presidente.

— Seis mil trezentos e setenta quilómetros. E qual é o segundo maior país do mundo? — Continuou Doutor Bombeiro.

O Presidente já tinha os olhos a revirarem-se e só conseguia emitir uns ruídos esquisitos.

— O Canadá, meu. — Disse entusiasmado Doutor Bombeiro. — E o maior lago do mundo, como se chama? Ok, não diga que não sabe, toda a gente sabe que é o Mar Cáspio. E a montanha mais alta de África? Ok, eu digo-lhe, não fique assim tão roxo e a babar-se, é o Kilimanjaro, toda a gente culta sabe. Como vê, eu sou a pessoa indicada para o cargo. Então, estou ou não admitido? Como? Não percebo nada do que está a dizer.

Doutor Bombeiro começou a achar estranho o comportamento do Presidente. Praticamente já estava quase no chão, todo roxo, a babar-se e a gesticular na direcção do telefone. Doutor Bombeiro achou por bem aproximar-se para tentar perceber o que se passava com o raio do homem. E ouviu o Presidente balbuciar baixinho: “Cento e doze, liga o cento e doze”.

— Para director do cento e doze? — Perguntou Doutor Bombeiro — Também serve, aliás isso era ouro sobre azul, pois sabe muito bem a minha competência como bombeiro, o meu gosto por salvar vidas humanas. Senhor Presidente, fico-lhe muito grato por me ter arranjado esse trabalhinho. Já agora, e a malta lá dos bombeiros, não se vai chatear? Afinal de contas, deram-me um chuto no cu recentemente.

E voltou a aproximar-se do Presidente para ouvir a resposta, que continuava, embora mais ténue e débil a ser: “Cento e doze, por favor, liga para o cento e doze...”

— Ok, tá bem, se insiste, eu vou para director geral do cento e doze. — Disse feliz Doutor Bombeiro. — E não o chateio mais, vou-me já embora, que você ainda tem de fazer umas visitinhas à freguesia.

E levantou-se para se ir embora, embora achasse estranho o comportamento do Presidente.

— Tem a certeza que se está a sentir bem? — Perguntou Doutor Bombeiro ao Presidente.

Do outro lado da secretária, ouviu apenas um grunhido de dor.

— Ok, não insisto, vou-me já embora. Não se esqueça. Amanhã apresento-me no serviço de emergência médica, para assumir as minhas funções. Boa noite — despediu-se Doutor Bombeiro, deixando o Presidente em agonia completa.

A sorte do Presidente foi a D. Ermelinda ter chegado entretanto, pois com o pânico gerado pela presença do Doutor Bombeiro, tinha-se esquecido dos óculos. Ao chegar a casa, não conseguiu fazer o jantar, pois não conseguia distinguir as lentriscas das febras. Ao deparar com o estado do Presidente, chamou a emergência médica e o Presidente, se ainda hoje exerce o cargo, á D. Ermelinda o deve.

Quanto ao Doutor Bombeiro, teve de fugir de vez, pois caso continuasse a viver por lá, iria concerteza necessitar diariamente do cento e doze, não como director geral, mas como utente. Nunca mais ninguém ouviu falar dele. Desapareceu sem deixar rasto.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Dizem que é uma espécie de melhor colégio do mundo… (e arredores, penso eu de que…)


Em Louricalix, o ambiente ainda fumegava um pouco para os lados do Colégio do Dr. Calvário. Habituados ao ambiente conventual da pacata terra, os dirigentes do referido colégio reagiram mal a um simulacro do PREC, protagonizado por uns pais, (meio desvairados na opinião dos referidos dirigentes), que decidiram preocupar-se com o percurso escolar dos seus filhos, tal como tinha sido pedido por Sua Excelência o Senhor Presidente da República, num discurso feito no 25 de Abril… ou talvez no 10 de Junho. Ou seria no 5 de Outubro? No S. Martinho é que não foi, de certeza... No dia de Ano Novo? Talvez. Bom, adiante, isso agora é irrelevante. Para quem não estava habituado a arritmias cardíacas, este simulacro do PREC foi uma espécie de «vai lá vai, que até a barraca abana…».

No ambiente habitual de “cortar à faca” do Colégio do Dr Calvário, um interessante diálogo desenrolava-se na sala da direcção pedagógica:

— Já não há pais como antigamente. Não acha, querida colega?

— Ai filha, não me diga nada. Este ano nem festa de Natal organizaram…

— E o peditório para a Cerci?

— Nós, que tínhamos os melhores pais do mundo e arredores, que organizavam o jantar de Natal, o peditório para a Cerci e ainda participavam na semana cultural com doces e compotas, este ano deu-lhes a maluqueira e começaram para aí a querer discutir o «projecto pedagógico»…

— Como se isso existisse, querida…

— Existisse o quê, filha?

— Então querida, o «projecto pedagógico»…

— Ah, pois claro, sim… quer dizer, concerteza… ou melhor, o que é isso de que eu nunca ouvi falar?

De repente um barulho interrompeu este belo, lindo, magnífico e interessante diálogo.

Truz... truz... truz...

— Quem é? Entre, que a porta está aberta, aliás está sempre aberta para todas as criancinhas..
— Xou eu, o T' Zé Broa

— O que é que a excelência deseja? A sua sorte é este colégio ser inclusivo e não elitista, senão já estava...

— Tão, mas voxa exência não apregou para os pais virem botar faladura quando a coisa está preta?

— Só me faltava mais esta... Diga lá, homem, o que é que quer?

— A'nha cachopa nam pisca nada de matemática, e queixa-se da shódoutoura não lhe conseguir ensinar...

— Era o que mais faltava. Agora um professor ensinar um aluno. O sucesso da escola começa em casa, ouviu homem? Você é que tem de ensinar a sua filha a perceber de matemática, não é o professor. Aliás, quem diz matemática, diz português, física, química, ciência, mecânica, evt, educação física, religião e moral, enfim, tudo...

— Tão, mas eu nam estudei nada, como é que póxo ajudar a catraia? Tem de ser a escola, c'os diabos...

— Já lhe disse que o problema da escola são os pais, que não percebem nada de nada. Depois querem que a escola ensine convenientemente os seus filhos. Como se isso fosse possível nos tempos que correm. Olhe, gaste mas é os tostões que tem debaixo do colchão em explicadores, pode ser que resulte...

— Enam, para isso a cachopa não prexixa de vir à escola. Fica lá a guardar a Clarissa, a vaca leiteira...

— Ó homem, então e depois? O que fazíamos ao pessoal que trabalha nos bares? Despedíamos toda a gente, não era? Os garotos têm de vir à escola, naturalmente, mas é para fazermos notas, não é para aprender.

— Raios t'a pardal, se eu entendo alguma coixa disto...

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O Conclave

A esta hora o aeroporto vive apinhado de multidões eufóricas. Gente de todo o lado, de todos os credos, de todas as raças, percorrem desenfreadamente todo o espaço disponível. Têm apenas uma pequena coisa em comum: estão todos ligeiramente atrasados para apanhar os respectivos voos. Mas isso acaba por ser perfeitamente normal neste enorme aeroporto, plantado na periferia da grande cidade.
Também é normal, nos tempos que correm, o facto de o aeroporto ser a casa de habitação de centenas de pessoas, (escrevi bem, pessoas), marginalizadas pelos infortúnios da vida ou muitas vezes vítimas do seu próprio percurso. O aeroporto acaba por ser uma espécie de sandes mista, onde se encontra um pouco de todos e um pouco de tudo.
Apesar deste caótico cenário de deslocação de multidões, existem sempre dois tipos de personalidades que se distinguem perfeitamente no meio da amálgama de corpos circulantes. Nunca saberemos, ao olhar para toda a gente, distinguir onde estão médicos, engenheiros civis, motoristas, padeiros, professoras, etc. Mas rapidamente distinguimos dois tipos de pessoas no meio da multidão. Os polícias e os padres.
O Cardeal Nascimento, de origem brasileira, aguardava calmamente no sítio previamente combinado. Distinguia-se perfeitamente no meio da multidão pelas suas vestes características e pelo ar sereno e tranquilo que transparecia no seu rosto, em contraste evidente com o rosto de toda a gente.
Tinha feito uma viagem tranquila desde S. Paulo, no Brasil, até Lisboa. Durante o tempo de voo, foi rezando baixinho, pedindo a protecção de Deus para o grande desafio que tinha pela frente nos próximos dias. Era a primeira vez que estava “metido” numa situação destas, pelo que as dúvidas e receios que se tinham abatido sobre si próprio eram de tal forma avassaladoras, que só com um forte silêncio interior, conseguido apenas com a prática da oração, lhe permitia enfrentar serenamente a situação.
Mais três figuras clericais se aproximaram do sítio onde estava o Cardeal Nascimento, em simultâneo, e com o mesmo passo calmo e descontraído que contrastava com a agitação do aeroporto. Um deles era de raça negra. Chama-se Bowen, tinha pouco mais de setenta anos, e era um dos cardeais mais estimado em todo o continente africano, pela luta constante em prol dos direitos humanos e ter desenvolvido uma luta pacífica pelos direitos dos povos à sua autodeterminação. Hoje a sua principal preocupação é o endividamento do chamado terceiro mundo ao mundo dito civilizado, bem como alertar para o facto de o terceiro mundo ser uma espécie de caixote do lixo das grandes potências mundiais. Tal como o Cardeal Nascimento, era a primeira vez que o Cardeal Bowen iria participar no grande evento que iria decorrer no Vaticano nos próximos dias. Os outros dois eram, respectivamente, americano e português.
Proveniente de Boston, o Cardeal Reilly era o mais novo de todos. Tinha um ar jovial e forte sentido de humor. Praticar o cristianismo num país como a América, era um desafio gigantesco, mas Reilly, pessoa de fortes convicções, conseguiu consolidar uma Igreja, que já era marcante na sociedade americana. Reilly não é profundamente admirador das linhas dogmáticas provenientes da Santa Sé. Mantinha-se na linha dos chamados renovadores, seguidor portanto daqueles que defendem alterações profundas na orientação do Vaticano, nomeadamente defendendo a plena integração da mulher nas actividades da comunidade, nomeadamente o acesso ao sacerdócio, a possibilidade de os padres poderem contrair matrimónio e uma reviravolta no que toca à visão do Vaticano relativamente à sexualidade. Basta isto para percebermos que se trata de um cardeal “persona non grata”, ou pelo menos visto com alguma reserva por parte das hostes eclesiais. Considerado um subversivo ao dogma reinante por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, foi alvo de várias tentativas de silenciamento, valendo-lhe o facto de a Igreja americana ser a pricipal financiadora da Santa Sé, e como os cofres do Vaticano não andavam de grande saúde, os “inquisidores” tiveram de ser tolerantes com o Cardeal Reilly.
O último cardeal é português. Viriato da Fonseca de seu nome, tem como principais características ser calmo e sereno. Intelectualmente é muito forte, (considerado até um dos mais brilhantes cardeais da actualidade), e tem tido um papel preponderante no diálogo entre as igrejas periféricas da Europa (América Latina, África e América do Norte) e a Santa Sé, que se tem mantido pregada aos seus dogmas e fiel a uma grande incapacidade de diálogo. Há quem o aponte como um dos grandes candidatos a sucessor do Grande Papa, recentemente falecido, exactamente por esta capacidade de intermediação, cada vez mais necessária. Atento ao mundo que o rodeia, vai largando, aqui e acolá, algumas dicas a favor de alguns temas mais controversos, mas sem se comprometer muito, ganhando assim simpatia entre gregos e troianos.
Foi este cardeal português a ter a ideia de marcar este encontro, antes do grande conclave, que se irá realizar dentro de dias. E o motivo é muito simples: discutirem abertamente entre eles, representantes de sensibilidades tão distintas e tão próprias no seio da Igreja Católica, todos os temas e situações que entendam pertinentes, e que os ajude a uma melhor reflexão, para que a escolha do sucessor de Pedro seja feita mais de acordo com os interesses da Igreja global e menos de acordo com os interesses de grupos e organizações internas.
Cumprimentaram-se cordialmente. Após a normal troca de queixumes simpáticos sobre as longas viagens feitas até Lisboa, dirigiram-se até à zona de embarque, pois eram já aguardados pela tripulação do jacto particular que os levaria a Roma. Seria na viagem, resguardados de outro tipo de passageiros, que dariam inicio à discussão combinada.
— Todos nós estamos empenhados em dar um contributo válido, transformador, na nossa Igreja. — começou por falar o Cardeal português — É essa a razão de nos encontrarmos juntos, neste momento. Todos temos consciência da forma avassaladora com que o mundo nos confronta diariamente com novos desafios aos valores do cristianismo. E por vezes sentimos que a nossa Igreja, (e não estou só a falar do clero, estou a referir-me também ao desempenho de todos os cristãos em geral), nem sempre responde de forma a ser bem interpretada. Gostaria, em primeiro lugar, de partilhar convosco uma pequena história que ilustra bem, na minha opinião, o problema da secularização, que é de facto, um dos maiores entraves a uma militância que se coloque mais perto dos desafios do mundo contemporâneo. Esta história ouvia-a em Coimbra, uma bela cidade portuguesa, em 1986, nos encontros Fé e Cultura, e nunca mais a esqueci.
“Há muitos anos, centenas decerto, certo guru, antigo, na Índia, sempre que reunia os seus iniciados para a oração da tarde, aparecia um gato, que passeando entre os orantes, perturbava a função. Um dia decidiu-se, logo que tocasse o sino da reunião, passar a prender o gato durante o tempo da oração, soltando-o a seguir. Passou o tempo, o guru morreu, morreu o gato, o tempo foi-se passando, novas gerações de gurus vieram, bem como novas gerações de iniciados e outros gatos, e se lá formos hoje, reparamos que quando toca o sino da reunião, toda a gente prende o seu gato. Com uma pequena diferença: é que hoje ninguém sabe porque se prende o gato.”
É bom que no presente e no futuro, se saiba porque fazemos certas coisas, para que não se perca a identidade. Todos nós temos as nossas comunidades, onde uma grande maioria dos crentes se limita a cumprir toda a tradição recebida sem saber o porquê, a razão da existência da referida tradição. E haverá naturalmente casos em que determinadas acções poderão ter feito sentido numa época e que hoje nem se justificam, pelo menos na forma como são praticadas. E depois ainda aparecem definições ainda mais mirabolantes, como por exemplo, ser católico não praticante, o que é um absurdo. Se somos católicos, temos de ser forçosamente praticantes. Isto é como ser nudista não praticante, desculpem a expressão. Ou se é ou não se é. Penso que um dos principais desafios da nossa Igreja é interiorizar este fenómeno e transformá-lo de forma a que os valores cristãos não tenham sentido ou fiquem desfigurados por práticas de culto pouco apelativas e desprovidas de sentimento.
— Estou em total concordância consigo — falou o Cardeal brasileiro — e julgo que aí reside uma das razões do afastamento, ou pelo menos, do menor interesse da juventude pela nossa Igreja. Muitas vezes assisto a criticas exacerbadas à juventude, porque o seu comportamento está longe daquilo que gostaríamos que fosse, porque a sua irreverência nos incomoda, porque demonstram uma quase total ausência de valores. No entanto, uma eucaristia com a participação activa de jovens adquire uma energia, uma vitalidade, uma dinâmica, uma força tão grande, que é um grande erro desbaratar este potencial. Quando falamos em juventude, temos de pensar que os grandes responsáveis pela atitude dos jovens perante a vida somos nós, porque somos nós, gerações mais velhas, que os educamos, formamos, lhes transmitimos valores, Eles são fruto da nossa realidade. Eu costumo, em encontros cristãos sobre a juventude, colocar à análise dos formandos, quatro frases que são sintomáticas daquilo que acabo de dizer, e vou também partilhá-las convosco:
1 - “A nossa juventude ama o luxo, é mal educada, zomba da autoridade e não tem nenhuma espécie de respeito pelos velhos. As crianças de hoje são tiranas. Não se levantam quando um velho entra numa sala, respondem a seus pais e são simplesmente más.”
2 - “Não tenho nenhuma esperança no futuro do nosso país, se a juventude de hoje toma o mando amanhã, porque esta juventude é insuportável, sem moderação, simplesmente terrível.”
3 - “O nosso mundo atingiu um estado crítico. Os filhos não escutam os pais. O fim do mundo não pode estar longe.”
4 - “Esta juventude está podre desde o fundo do coração. Os jovens são maus e preguiçosos. Não serão nunca a juventude de outrora. Os de hoje não são capazes de manter a nossa cultura.”
Naturalmente, custa-vos a estar de acordo com estas frases, mas concerteza já ouviram coisas muito semelhantes, e continuarão a ouvir. Apenas por curiosidade digo-vos que a primeira frase é de Sócrates, que viveu como sabem cerca de 470 A.C., a segunda frase é de Hesíodo que viveu 720 A.C., a terceira frase é de um sacerdote egípcio, cerca de 2000 A.C. e a quarta frase foi descoberta numas ruínas da Babilónia com cerca de 3000 anos. Apetece dizer: a juventude de hoje...
Como vêem, o fenómeno da juventude não é um desafio novo. Nós é que não o sabemos entender, e possivelmente não estamos preparados para o fazer. Não sabemos aproveitar o seu sentido de justiça. A juventude é muito sensível à discriminação, à injustiça social, à pobreza, à ganância. São mais sensíveis à partilha, ao amor, a viver a vida com intensidade. E se por vezes se perdem, é porque não lhes apontamos o caminho.
— Plenamente de acordo — disse o Cardeal africano — É no meio do mundo que devíamos estar e não enfiados nos templos, supostamente a agradar a Deus, e a cultivar apenas o ritual e o devocional, insensíveis às questões da justiça e do sofrimento humano. Já Aristóteles dizia : “O homem só é feliz quando pode desenvolver e usar todas as suas faculdades e capacidades”. No meu continente, isto não passa de uma miragem, ou melhor, de ficção científica. É difícil pregar o evangelho da forma dogmática que a Santa Sé deseja. Quando somos confrontados com mais de quatro milhões de refugiados em África, com uma degradação galopante do tecido social da humanidade, com milhões de pessoas sofrendo sob a miséria e a pobreza, tendo ao lado uma minoria que acumula riqueza e bem-estar. Quando somos confrontados com anos e anos de guerras intermináveis, com a maior taxa de mortalidade infantil, quando morrem aos milhares pessoas com doenças cuja cura existe há décadas, como é que podemos falar de um Deus que os ama? Uma vez, num hospital visitei crianças órfãs, estropiadas pela guerra. Uma disse-me assim: “já nada me interessa. A minha maior dor não é ser órfão de pais, é ser órfão de Deus”. Só através de comunidades de base, onde a solidariedade, a partilha prevalecem, é que tem sido possível fazer algo positivo. Temos de nos empenhar com a dimensão humana onde brotam valores de solidariedade, generosidade, dádiva. Temos de nos empenhar no respeito pelas diferenças culturais e até raciais. A propósito, e a título de brincadeira, vou partilhar convosco o seguinte: pouco antes de embarcar para vir ter convosco, fui abordado por muita gente, de todo o lado, que me diziam ter muita fé e esperança de eu vir a suceder ao Grande Papa. A Igreja, diziam, precisa de um Papa africano, para lhe dar uma dimensão mais humana. Eu, interiormente, ri-me. Imaginem um Papa negro. Mais de metade das beatas da Europa tinham uma síncope cardíaca. Não, a Igreja não está preparada para ter um Papa negro.
— Nem para isso, nem para muito mais — interrompeu o Cardeal americano — Aliás, como já referiram, a Igreja está agarrada a pensamentos e atitudes centenárias, muitas delas com origem em decisões tomadas em concílios, que foram realizados muito mais tarde à sua fundação, e que distorcem por completo a acção de Jesus Cristo. E isso torna muito difícil uma evangelização para o século XXI, uma vez que as pessoas hoje em dia têm já uma informação global sobre o mundo, têm mais cultura, além de ter outras propostas de vida mais fáceis e atraentes, naturalmente mais ilusórias. Talvez seja altura de colocar à reflexão deste grupo mais dois ou três aspectos ainda não referidos. Em primeiro lugar, a mulher. A forma como a Igreja, sociedade patriarcal e autocrática, vê a mulher.
A mulher, apesar de todo o discurso reinante ser de valorização e respeito, continua a não ser reconhecida como capaz ou apta a exercer as mesmas funções que o homem, na Igreja. Isto, como podem imaginar, no meu país é inconcebível. Eu próprio não aceito. Há uns tempos tive de resolver um pequeno problema numa paróquia. Um padre jovem, muito estimado pela população, foi transferido para outras funções, por absoluta necessidade da Diocese. Nunca passou pela cabeça de ninguém que a população se revoltasse. Ao ser colocado um outro padre, cujo perfil era idêntico ao anterior, a população levou imenso tempo a adaptar-se, mais por protesto do que por outra coisa qualquer. Passado algum tempo, o vigário da zona reuniu-se com algumas pessoas para avaliar a situação. Numa fase mais ou menos tensa da reunião, o vigário, inadvertidamente afirmou que aquela paróquia nem deveria reclamar muito, porque nunca “tinha dado nenhum padre à Diocese”, ou seja, nunca ninguém daquela paróquia tinha seguido a vocação sacerdotal. Então um homem respondeu-lhe: “Sr Vigário, acho injusto a sua afirmação. Sempre tive o maior empenho de que quando me nascesse um filho ele seguisse a vocação de sacerdote. Era o meu maior orgulho. Por ironia do destino, ou porque efectivamente Deus assim quis, assim me destinou, nasceram duas raparigas. Que culpa tenho eu de vocês só quererem rapazes?”
O vigário teve de se calar, claro. No mundo actual, onde a mulher tem já uma predominância na sociedade, em todas as áreas, não se compreende esta marginalização.
— Bom, então se falamos na mulher, teremos que abordar outro assunto que também está na ordem do dia. — falou o Cardeal brasileiro — A sexualidade. A nossa Igreja construiu uma neurose, senão mesmo um desequilíbrio sério à volta da sexualidade, por influências do Gnosticismo e do Maniqueísmo. À custa desta herança, construiu-se a ideia, já bem enraizada, de que as relações sexuais entre um casal, na melhor das hipóteses são toleráveis face à procriação, e na pior das hipóteses, um sinal do mal perpétuo que habita o mundo. E depois, ao longo da história da Igreja, tivemos diversos exemplos que ajudaram a denegrir a sexualidade. Marcião, Cristão Gnóstico, permitia o baptismo apenas às virgens, viúvas e casais que concordassem renegar ao sexo. Tatiano achava que o acto sexual era uma invenção do Demónio e achava que a vida cristã era impensável para lá dos limites da virgindade. Ora, a sexualidade conjugal é um factor determinante para a boa harmonia do casal. Todos nós sabemos isso. Eu costumo dizer que tomara eu que todos os casais que me procuram com problemas sérios de divórcio fizessem amor todos os dias. Quebravam as barreiras do orgulho, da distância, aumentavam os níveis de afectividade e sobretudo de cumplicidade. Temos de alterar estes pensamentos negativos à volta da sexualidade. Ao invés, devemos esforçarmo-nos por divulgar a ideia de sexualidade responsável, tendo em vista o amor e a harmonia. A sexualidade só é má quando é mal utilizada, quando em vez de promover a estabilidade afectiva entre os casais, provoca exactamente o contrário. Os desvios que a sexualidade pode trazer, nomeadamente a pedofilia tão em voga ultimamente e que também nos tem sido extremamente cara, resultam muitas vezes da imagem distorcida que nós, Igreja, ajudámos a criar. Também contribuímos para ela. A mensagem que tem de ser transmitida é que a sexualidade responsável torna os casais mais felizes. Casais mais felizes tornam famílias mais felizes e famílias mais felizes permitem o crescimento mais saudável de indivíduos. E indivíduos mais felizes fazem sociedades mais felizes, menos problemáticas.
— Sem dúvida. — retorquiu o cardeal americano — A sociedade americana, como sabem, vive sempre o dilema da sexualidade, por vezes levada ao extremo, exactamente por uma questão de afirmação perante respostas tão intolerantes e tão drásticas que nós por vezes damos. E como sabem, a pedofilia tem sido uma caso sério na Igreja americana, não vale a pena escamotear a situação. E isso leva-nos a pensar na sexualidade do clero. Há uns tempos, ao reler determinadas obras que estudei no tempo de seminário, altura em que não tinha espirito critico sobre nada, aceitava de boa mente toda a informação e formação prestada no seminário, como sendo toda a suprema vontade de Deus, dei com um pouco da história sobre o celibato imposto aos padres. Foi exactamente a partir das ideias de desconfiança quanto ao sexo conjugal que a partir do século quarto a Igreja decretou leis proibindo os padre de terem relações sexuais com as respectivas mulheres, ou de terem filhos. Isto significa que no inicio da formação da Igreja, este problema nunca se colocou, e os padres tinham uma organização afectiva igual à de todos os homens. Curiosamente, todos os padres que a partir desta decisão se recusassem a cumprir, corriam o risco de espancamentos públicos, prisão, demissão do sacerdócio e inclusivamente invalidação dos casamentos, ficando as mulheres e os filhos reduzidos a escravos da Igreja. Estão a ver o que custa explicar esta situação aos jovens de hoje, tendo como base tudo isto que acabei de relatar. Não faz sentido nenhum, é um perfeito disparate e é altura de analisarmos esta questão com muita idoneidade. Possivelmente, se já tivéssemos tido a coragem de o fazer, ter-me-ia poupado alguns dissabores bem recentes.
— É claro que a questão do padre se casar ou não, deverá sempre ser uma decisão pessoal. — afirmou o cardeal africano — E todos temos funções importantes a desempenhar, sendo casados ou não. É uma questão de a Igreja reflectir profundamente sobre novos modelos de evangelização, e não estar agregada a modelos já gastos e cansados. Outro aspecto importante a reflectir: vivemos num tempo em que o dinheiro se impôs à maioria das pessoas como o valor primeiro e absoluto, o deus por excelência. Mesmo na nossa Igreja, grande parte dos seus membros com responsabilidade prestam culto sem se dar conta que ele é um Deus-Demónio, devorador de vidas que jamais se dá por satisfeito. Temos de assumir que a verdadeira “religião” é a opção pelos pobres, que são cerca de oitenta por cento da população mundial. É aí que Jesus faz sentido e falta. E é essa também uma das mensagens que temos de fazer valer neste Conclave, a par de todos os outros temas que aqui partilhámos.
Todos acenaram com a cabeça em sinal de concordância. Todos sentiam uma necessidade enorme de a Igreja se virar mais para o Homem, estar mais perto da realidade, para a poder transformar.
O avião estava já na fase descendente, pelo que todos fizeram um pacto de silêncio à volta da conversa tida neste voo. Prometeram ficar fieis a estas ideias e tentar difundi-las de forma cautelosa no Conclave, embora todos sentissem que a estrutura ainda estava muito longe da abertura necessária para que algo mudasse. Mas isto seria o principio, seria o fermento que iria levedar a massa. Sobre isso ninguém tinha dúvidas. Ninguém.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A angústia de existir

— São pelo menos trinta metros de altura — pensou, olhando a enorme massa de água que corria lá em baixo.
Pendurado na estrutura metálica da ponte, olhava o rio que banhava a cidade e que tão boas recordações da infância lhe trazia. Tinha planeado para esta noite aquilo que para si era o maior acto de liberdade do ser humano. A sua ansiedade era enorme, porque não sabia se iria ter sucesso ou não. De qualquer forma, mesmo que ninguém aderisse, iria fazê-lo sozinho.
A noite estava agradável. Uma suave brisa envolvia a sua cara, criando um cenário impróprio para a aventura, se é que se pode chamar assim, que iria praticar nesta noite.
Lembrou-se da sua mãe, que naturalmente estaria, naquele momento, inquieta pela sua ausência.
Foi criado pela mãe, que sempre foi mãe e pai para ele. Trabalhou de sol a sol para que o seu filho tivesse tudo e que nunca lhe faltasse nada. De dia trabalhava na fábrica das redes e à noite ainda ia fazer limpezas ao escritório de uma multinacional. Isto levou-o a passar muito tempo sozinho, o que nem sempre foi positivo, pois foi também a necessidade de ultrapassar a solidão que o levou a procurar caminhos que o levaram ao lamaçal da vida. Sente neste momento que nem sempre foi justo e reconhecido à dedicação e ao amor da sua mãe. Afinal de contas, ela fez mais do que podia para que a sua vida fosse de outra forma.
Do seu pai, ou melhor, do seu progenitor, porque pai é muito mais do que participar na criação, poucas recordações tem. Em determinada altura preocupou-se em conhecê-lo, mas o seu progenitor nunca se interessou. Era como se nunca tivesse existido.
Apesar disso, sua mãe nunca disse uma palavra contra ele, nunca o incentivou a ser contra o progenitor.
Uma vez encontrou-se com ele, mas o sentimento de abandono veio ao de cimo, e nunca mais o quis ver. Há uma fase na nossa vida em que os nossos pais são os nossos ídolos. Nunca tinha sentido isso, e para ele sempre foi uma sensação estranha ver o progenitor. Não fazia parte do seu mundo. Não lhe dizia nada, e era uma coisa muito esquisita quando ouvia os colegas falarem entusiasmados dos seus pais. Ao mesmo tempo sentia-se inferiorizado e deslocado no grupo de amigos, pois era o único que parecia ter nascido de uma relação assexuada. Desse tempo guarda uma profunda mágoa.
Nessa altura, na escola, começou a ter os primeiros problemas sérios da sua existência. Começou a ter uma apetência quase natural para só fazer asneiras, e quanto às aulas a vontade era nula. Conflitos em casa era todos os dias. Foi um tempo em que muita gente se metia na droga, e sentindo-se um pouco desamparado, lá caíu nessa asneira também. Chumbou. Lá em casa as coisas tornaram-se insuportáveis. A mãe já não lhe falava, gritava a toda a hora. Para mais, ele começou a roubar-lhe algum dinheiro e a vender algumas peças de decoração que havia lá em casa, para sustentar o vício, o que ainda agudizou mais o ambiente familiar. Na escola, foi parar a uma turma que era somente a pior turma, com pessoal de dezoito, dezanove anos, todos repetentes. Se na altura ele já tinha um comportamento difícil, a partir daí tornou-se um autêntico marginal. Foi quando decidiu sair de casa, dormindo pelas ruas, arrumando automóveis na baixa da cidade. Tudo o que ganhava gastava na droga.
— Devia ter morrido nessa altura — pensou.
Foi quando a conheceu. Primeiro um simples contacto visual. Ela estacionava o carro, dava-lhe uma moeda, e no inicio era apenas mais uma pessoa das centenas que por ali arrumavam os seus automóveis. Mais tarde, uma troca breve de palavras, face já a um certo hábito matinal e vespertino, o que aumentou a intimidade entre ambos, Depois um café juntos, mais tarde, no final do dia uma cerveja e uma conversa mais relaxada, sem pressas e sem stress. Um dia, depois de terem bebido umas bejecas ao fim da tarde, o desejo súbito de um passeio ao longo da margem do rio. De um lado, a calma das águas frias, salpicadas apenas ao longe por um navio deslocado. Do outro lado, o rebuliço da cidade em hora de ponta. Foi quando deram pela primeira vez as mãos, e se olharam mais profundamente.
Soube logo nessa altura que nunca mais seria o mesmo.
A partir daí, a relação foi subindo de temperatura. Começou a frequentar a casa dela. Vivia sozinha, vinha de uma relação amorosa fracassada, estava de certa forma carente, e ele tinha sido a coisa mais fantástica que lhe tinha acontecido. Meteu logo na sua cabeça que tinha de mudar completamente a sua vida, dar uma volta de cento e oitenta graus. Largou a vida degradante que levava, voltou para casa da mãe, e matriculou-se novamente na escola, à noite.
Começou a procurar um trabalho decente que lhe permitisse sonhar construir uma vida a dois, com ela. Não foi fácil, aliás foi de facto a parte mais difícil. Entregar pizzas ao domicilio foi o que se arranjou. Foram tempos muito duros. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Pensou em desistir, mas por um lado precisava do dinheiro para poder manter uma vida com alguma estabilidade.
Por outro lado tinha de continuar os estudos, sobretudo por causa dela, que era formada e tinha um excelente emprego numa empresa privada de grande implantação no país. Tinha que mostrar a ela e aos outros que tinha capacidade, que era capaz de vencer na vida.
A certa altura sentiu que a relação com ela tinha perdido algum entusiasmo, mas atribuíu essa quebra à vida atribulada que levava. Ela, por vezes, nem sempre estava disponível para se encontrar consigo, desculpando-se com afazeres da empresa.
Um dia, a bomba estoirou. “Tinha sido muito bom, foi muito importante para ela naquela fase difícil da sua vida, eu era uma pessoa muito generosa, como eu existiam poucos, que nunca o esqueceria na vida, só que tinha chegado à conclusão que a relação não dava, havia um grande fosso intelectual entre ambos, e além do mais, a pessoa da sua relação anterior, a tal que a tinha colocado muito carente e se não fosse eu não saberia como tinha aguentado tamanho desgosto, tinha reconsiderado e agora pretendia uma reconciliação e uma vida a dois mais séria e envolvente. E ela tinha pensado muito e chegado á conclusão que o seu coração ainda estava do lado dessa pessoa, pelo que não valia a pena insistir naquilo que não teria futuro. Seria sempre sua amiga, claro está, sempre que precisasse de alguma coisa era só dizer.”
E assim, sem mais nem menos, com um largo sorriso, virou-me as costas e nunca mais a vi até hoje.
Um tipo não é de ferro. Sentiu que tudo ia por água a baixo, nada do que tinha feito, de todo o esforço para mudar e melhorar a vida, fazia sentido. Perdeu-se um bocado, foi para a noite. Nunca se deitava antes das sete da manhã. Voltaram os problemas em casa, o emprego das pizzas foi-se e acabou a trabalhar num bar nocturno de ambiente degradante. Conheceu gente do arco-da-velha, gente que não interessa a ninguém. E foi então que a coisa se complicou. Uma noite, já o pessoal estava todo com os copos, uma malta, cliente habitual do bar, convidou-o para dar um passeio. Chegados a uma zona residencial, onde existiam umas lojas, encostaram o carro e pediram para aguardar um pouco, pois tinham de ir dar um recado a uma pessoa amiga que vivia num daqueles prédios. Ficou dentro do carro e de repente ouviu uma sirene estridente, uma gritaria infernal, e quando deu por si, estavam dois polícias ao pé do carro a pedir-lhe para os acompanhar. Os seus amigos nunca mais os viu, soube mais tarde que estavam a assaltar uma das lojas. O carro era roubado, e ele, por mais que jurasse a sua inocência, não conseguiu que alguém acreditasse nele. Foi passar uns tempos ao xelindró. A sua mãe ia morrendo de vergonha. Foi a pior experiência de toda a sua vida. Pediu à mãe para a procurar, pois ela tinha bons conhecimentos e podia ajudá-lo. A resposta veio dois dias depois. Que não se lembrava de ter conhecido ninguém parecido com ele, que deveria haver algum engano, naturalmente. Quando saíu, o mundo estava definitivamente ao contrário. Procurou arranjar trabalho, mas o mais que conseguiu foi numas bombas de gasolina. Mas quando descobriram que era um ex-presidiário, alegaram que estavam fartos de ser assaltados, que poderia ser um informador, e como tal o melhor era pôr-se ao fresco antes que a coisa se complicasse. E ele, como complicações já tinha que chegasse, veio-se embora, revoltado com tudo e todos. Os dias passaram a ser em total isolamento, fechado em casa. Pouco saía, não queria contactar com ninguém. O silêncio era enorme, apenas quebrado pela angústia da sua mãe. A sua existência passou apenas a ter uma duvida: para quê viver?
Foi quando lhee deu para esta coisa da internet. E lembrou-se deste desafio. Estaria sozinho nesta angustia?
“Aqui estou, empoleirado nesta ponte à espera da resposta à minha dúvida. O e-mail era claro e objectivo. Seria bom que alguém viesse, ou melhor, seria muito mau. Afinal de contas, ninguém vive para este desfecho. Mas quando nunca se foi feliz, não se é, e o mais provável é que nunca se seja, para quê adiar isto? Não passará de hoje, ao menos no meu destino quero mandar eu.”
Começei a ouvir passos. Eram várias pessoas, pelo barulho descompassado que se sentia. Ouvi uma voz ao longe:
— Patinho Feio?! Estás aí?
E mais passos, agora cada vez mais perto.
— Patinho Feio?! Estás aí?
Fiquei aterrado e ao mesmo tempo feliz, que coisa estranha. Mal consegui balbuciar:
— Estou aqui... aqui mesmo!
E de repente comecei a ver-me rodeado de muita gente, nova como eu, com os aspectos mais diferentes que já alguma vez tinha visto. E todos falavam ao mesmo tempo:
— Patinho Feio, és tu? Viemos ao teu encontro, conforme pediste. Queremos ser tão dignos como tu de escolher o nosso futuro.
Eu não conseguia esconder a cara de surpresa que tinha. Nunca pensei que a minha mensagem tivesse tantos adeptos.
— Mas... quem são vocês?
— Jovens como tu, desenraizados, inadaptados, incompreendidos, e sobretudo, não amados. — responderam em uníssono.
Talvez por ver a minha cara de espanto, uma rapariga adiantou-se e disse-me:
— Chamo-me Ana ou Marta, ou ainda Madalena ou Carolina. Tenho vários nomes e ao mesmo tempo não sou ninguém. Não penses que és só tu que anseias pela liberdade e pelo amor. Fiquei sem pai e mãe desde muito cedo, aliás nem me lembro muito bem deles. Quem ficou a cuidar de mim foi uma tia, que passava o tempo a bater-me e a rogar pragas pelo facto de me ter a seu cargo. Vivi durante anos num estado de medo permanente, em constante sobressalto. Cresci assim, e fui desenvolvendo uma certeza: não iria aguentar para toda a vida este inferno. Um dia conheci um rapaz, que me prometeu este mundo e o outro, e me deslumbrou com os seus conhecimentos e o seu charme. Lembro-me com afecto dos encontros secretos debaixo do grande plátano que existia no centro da minha aldeia, testemunha dos primeiros beijos e das primeiras carícias. Nesse plátano ficaram gravados a canivete corações atravessados por setas jurando amor eterno. Um dia fugimos para a grande cidade. No horizonte, grandes sonhos de felicidade e de vida próspera. Os primeiros tempos foram vividos na rua. Como éramos jovens e apaixonados enfrentávamos a vida com um sorriso nos lábios. Ele trabalhava nas obras e eu ia para os parques dos hipermercados arrumar carrinhos. Começámos a ter alguns amigos, todos marginais da vida, como nós éramos, e ao fim de uns tempos, convidaram-nos a ir viver com eles, numa casa desabitada e completamente degradada. Apesar de ser mais parecida com uma lixeira do que propriamente com uma casa, foi o nosso primeiro tecto, onde partilhámos bons momentos e alguns menos bons. Mas o destino acabou por ser outro. O que ficou da relação foi uma gravidez inesperada. Perante esta responsabilidade, ele desapareceu e nunca mais o vi. Acabei por ser abandonada por ele e pelos seus amigos. Com um filho nos braços para criar como futuro próximo, senti na pele a solidão angustiante de quem nunca teve, não tem e nunca terá nada da vida a não ser ilusões e sonhos efémeros. Senti o desespero de não saber para onde ir nem a quem pedir ajuda. Voltar para a minha aldeia, junto da minha tia estava fora de questão. Ao deambular sem sentido pelas ruas da cidade tendo como solução no horizonte pôr fim à vida, encontrei uma antiga colega quando arrumava carrinhos nos hipermercados. Por seu intermédio acabei por ser acolhida numa casa de passe, passando a conviver com outras mulheres, que vendendo prazer e ilusões recebiam como pagamento o infortúnio da vida. Ali fazia os trabalhos da manutenção da casa, como a limpeza e a comida. E foram elas que me deram solução para a minha gravidez, que, na opinião delas, só me iria complicar a vida. A criança mal nasceu, tinha à sua espera um casal de estrangeiros, futuros pais adoptivos do meu filho, que eu nunca mais vi. Uma parte de mim, a mais importante, desapareceu. Foi e é a maior mágoa da minha vida, uma mágoa profunda e dilacerante, que nunca mais me abandonou, e que me fez sentir que a vida às vezes não devia valer, devia ser como um gravador de cassetes, deveria ter uma tecla para andar para trás a fita e gravar de novo. Passei a “trabalhar” como as outras raparigas. Mas eu, que vendia prazer, quem me dava prazer a mim, quem me acarinhava e ajudava a suportar esta dor, esta angústia? A vida deixou de ter sentido, definitivamente. Ouvi o teu apelo e estou aqui para ser solidária contigo e partilhar contigo a decisão que tomaste para esta noite e que é minha também.
Ia chegando cada vez mais gente anónima, em silêncio.
— Eu chamo-me Zé, um nome vulgar e sem importância. Ou melhor, eu é que não tenho importância. Sou filho de emigrantes, nasci naquilo que hoje se chama um bairro problemático. A minha mãe abandonou-me aos quatro anos, farta de levar porrada do meu pai. Fiquei aos cuidados dele, que estava sempre bêbado e sem emprego certo. Por isso muitas vezes não havia comida na mesa, apenas porrada atrás de porrada. Quando entrei na escola, aos seis anos, talvez pelo exemplo e pelo ambiente diário que tinha em casa, comecei a demonstrar toda a minha agressividade, batendo não só nos colegas, mas também na professora. Era a forma de me afirmar. É claro que isto não iria durar muito, não porque a escola conseguisse modificar-me, mas porque comecei a faltar com frequência. Convivia nessa altura com um grupo de vizinhos que tinham formado um gang cuja especialidade era assaltar tudo o que aparecesse à frente, e isto tudo me seduzia. Comecei a fumar e andar à boleia na vida da marginalidade e do crime. Ao principio eram só assaltos a carros. Fui preso várias vezes, mas como era menor, acabava por não ter grandes chatices. Mais tarde pratiquei assaltos à mão armada a bombas de gasolina e ourivesarias. Acabei por ser preso. Na prisão, em vez de me corrigir, aprofundei os meus conhecimentos, não só na arte do crime, como conhecimentos e influências que me ajudariam depois de sair da pildra. Cá fora, quem é que se interessa em dar um emprego a um ex-presidiário? A tentação é grande e com os conhecimentos adquiridos, dediquei-me ao tráfico de droga. Fui preso novamente. E tem sido sempre assim, mais tempo na prisão do que cá fora. Faz sentido? Desperdicei a minha vida, não vejo horizontes positivos no horizonte a não ser as grades da prisão. A vida assim não vale a pena, pelo que tendo conhecimento da tua proposta, resolvi adoptá-la para mim próprio. Cá estou, conta comigo.
— Poderá uma paixão de adolescente durar uma vida inteira? — questionou um homem que trazia uma camisola onde se podia ler “Homem Sem Nome”. — Eu queria acreditar que sim, mas hoje vejo que é uma utopia demente acreditar nisso. Foi sempre a minha paixão. Porém nunca nada estava bem. Hoje era isto, amanhã aquilo, no outro dia outra coisa qualquer. A minha luta diária era agradar para segurar aquele que era o amor da minha vida. Acabei por dar cabo de mim e dos que me rodeavam. Perdi tudo, a família, os amigos, a paz interior, a oportunidade de ser feliz. Hoje deixei um poema escrito:

Devo crer...
Que o amor é fogo
Que arde sem se ver?
Então...
Como ter um incêndio que dilate o meu ser?
Então...
Como fazer
Para pôr o meu peito a arder
Se com o teu olhar
Frio ao amanhecer
Me sinto lentamente
A desfazer...

— A poesia, sim a poesia... — murmurou a multidão baixinho.
Ouviu-se uma outra voz, dispersa, ao longe, declamando:

De repente
Fugi da “gente”
Como quem mente
Perdidamente
Para te desejar ardentemente
Um Natal diferente
Onde o espírito prepotente
E a calúnia indecente
Deixem de existir finalmente.
De repente
Olho desesperadamente
Para um “Carnaval” demente
De fachada inconsistente
E de pobreza imponente.
Desejar-te tristemente
Uma alegria impotente
Para tentares viver alegremente
Numa vida inconsequente
È a minha angústia, exactamente

Uma outra voz se ergueu:

O sofrimento
foi lançado à multidão
Com o pequeno gesto
De uma mão
Consumir desalmadamente
É a razão
Imaginar a felicidade
É a ilusão
O futuro da podridão
É o lucro até mais não
A droga transformou-os em solidão
Na violência perdeu-se um irmão
Ganhou-se o desespero
Da prostituição
Ficaram os náufragos da civilização
E a vida é uma desilusão
Uma total desilusão...

— Uma total desilusão... — repetiu Patinho Feio.
Cada vez chegavam mais pessoas, em silêncio.
Aos poucos foram dando as mãos, formando um cordão humano, silencioso. Olharam-se nos olhos, e então, num gesto colectivo, saltaram todos. Sem excepção.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Patetice

Desculpe intrometer-me nesta história, caro leitor, não quero de maneira nenhuma ser mal-educado ou oportunista, mas aproveito a ausência do narrador, para poder partilhar consigo a minha experiência do sonho, que não é menos fantástica do que a história anterior.
O meu nome é muito conhecido, por ser um dos produtos de sucesso de uma grande empresa americana de desenhos animados, como se dizia no meu tempo. Chamo-me Pateta, sou um cão, de cor amarelada, e tenho sempre o papel de fazer disparates atrás de disparates, porque se descobriu que as pessoas riem mais facilmente com os disparates. Este estilo de vida, parecendo um pouco desvairado ou aberrante, tinha pelo menos a vantagem de não exigir muito de mim, pelo simples facto de não ter nenhumas responsabilidades a assumir. Era uma vida pacata, calma, salpicada aqui e acolá com os desvarios normais da enredo da história, que faziam rir por este mundo fora a garotada e não só. De maneira que tudo seria eternamente constante, sem grandes alterações, se de repente não tivesse existido uma pontinha de ganância para alterar o curso da história. Aliás, é curioso verificar que todas as alterações abruptas da história humana tem como origem a ganância, essa ambição desmedida de conquista de poder. E de uma forma incrível, ou talvez não, essa “doença secular”, penso que podemos chamar-lhe assim, transmitiu-se para a banda desenhada. Pensando melhor, tinha de ser mesmo assim.
Afinal a banda desenhada foi inventada pelos humanos e claro, tem de reflectir todos os seus valores.
Foi assim que eu me vi envolvido na teia da conquista do poder.
Primeiro desconfiado, pois era tudo uma novidade para mim. Depois entusiasmado, fruto da estratégia enganosa, hoje posso falar assim, que me foi oferecida sem eu duvidar minimamente.
Lembro-me de tudo ao pormenor. Era um dia calmo, de sol brilhante, sem nuvens a importunar a beleza do céu azul. Ali estava eu, roendo um osso na falésia, desfrutando de uma paisagem magnifica sobre o mar sereno. Que mais precisava eu além de toda esta tranquilidade? Entretido desta forma nem me lembro de alguém me chamar. Só quando os gritos se tornaram insuportáveis é que me apercebi que era o meu nome que estava na origem de todo aquele alarido.
— Pôxa Pateta, você é cá um distraidão, heim?! — Ouvi eu.
— Oi, Tio Patinhas — disse, surpreso com a aparição meteórica desta personagem, símbolo do vil metal.
— Aca — respondeu Tio Patinhas, que de momento se esqueceu do motivo que o tinha levado ao meu encontro.
Ficámos a olhar um para o outro, eu à espera que ele continuasse, e ele a ver se conseguia lembrar-se da razão de ali estar.
— Ah, já me lembro. Quero que você se arrume direitinho, se ponha charmoso, porque dentro de meia-hora tem de ir comigo a uma reunião muito importante, na sede do PPPP. Rápido, viu?
— PPPP?! — Exclamei, surpreso.
— Sim, PPPP, o Partido Popular da Panela de Pressão. Não conhece, não?
— Não estou vendo não, cara, nem me lembro de nada com esse nome tão esquisito — afirmei com um ar de intrigado.
— Você é mesmo cachorro, né? — Olhou desalentado para mim — Então não se lembra do PPT?
— PPT?! – exclamei ainda mais confuso.
— Sim, PPT, Partido Popular do Tacho.
— Ah, sim senhor, esse conheço, é o partido dos políticos inúteis, cujo símbolo é o esse com dois traços ao alto.
— Viu como já conhece? Então, é isso aí, só que agora alterou-se o nome, para dar mais importância. Estava na altura de melhorar a imagem do partido, e assim promoveu-se o tacho a panela de pressão. Bom, é lá a reunião, toca a despachar que tempo é dinheiro, e não se pode desperdiçar um cêntimo que seja.
Ainda meio atarantado, lá fui para casa aprontar-me, levando o osso comigo.
— O que é isso? Não pense que vai levar esse pestilento osso para a reunião, seu moleque rafeiro. — vociferou Tio Patinhas, muito vermelho.
E lá tive de abandonar o meu melhor amigo.
A viagem foi muito turbo-lenta, pois a condução do Tio Patinhas, após os primeiros cem metros, dava para sentirmos náuseas e vómitos com fartura. Isto para não falar da carripana do velho, cuja fumarada saía por todo o lado menos pelo tubo de escape, bem como da barulheira infernal que se ouvia lá dentro, fruto da viagem ser realizada sempre em primeira, como se o machimbombo não tivesse mais mudanças.
Após estes sobressaltos inesperados, chegámos finalmente à sede do PPPP. Era um edifício discreto, no centro da cidade, cuja fachada em tijoleira vermelha ia mudando lentamente de cor, para negro, devido à poluição e sujidade. O interior era cómodo e mais arejado. Mal entrámos, e após os cumprimentos da praxe, feitos à pressa, fomos logo conduzidos por um amplo corredor até uma sala, onde éramos aguardados por cerca de vinte personalidades, cuja característica comum eram o ar de desespero e ansiedade que brilhava nas suas caras.
— Finalmente. — falou um dos presentes, com um ar sinistro.
— Há qualquer coisa que eu não percebo, — falou outro — fizeram-me esperar este tempo todo por causa de um velho pato caquéctico e de um cão?
— Este velho caquéctico é quem paga a campanha, sua besta, e o cão é o Pateta. E que eu saiba, foi isso que combinámos. Ou já se esqueceu de que precisávamos de um pateta para este trabalho? — berrou Tio Patinhas, com um olhar ameaçador.
O silêncio foi total. Ninguém se atreveu a abrir a boca. Rapidamente se colocaram em volta de uma mesa e deram inicio aos trabalhos.
Já podem imaginar a minha cara de espanto e de terror ao ver-me metido num ambiente destes. Os diálogos eram curtos e objectivos, feitos em voz baixa, de forma a que eu não ouvisse muito bem tudo o que era dito. Mas é óbvio que eles se esqueceram que eu sou um cão, e como tal, a minha audição é excelente. Por isso ouvi a conversa toda.
— Não vale a pena estar sempre a repetir que temos de seguir a estratégia delineada sem uma falha. — falou o Tio Patinhas — Já desperdiçámos imenso tempo e sobretudo muito do meu dinheirinho em coisas que não nos trouxeram vantagens. Por isso, eu peço ao Dr. Nunca que mais uma vez explique detalhadamente todo o processo, e vocês metam dentro do vosso pequeno cérebro, se o tiverem, que isto é para levar a sério, sem asneiras nem peixeiradas.
— Bem, — iniciou a palestra Dr Nunca — como já disse setenta e seis vezes, toda a estratégia do PPPP para ganhar as eleições passam pelas seguintes etapas:
Primeira – arranjar um candidato que não pense, não fale, não tenha ideias, não faça nada socialmente, de que nunca tenha ouvido falar, e que seja ao mesmo tempo simpática, brincalhona com as crianças e com os velhinhos. Com um candidato assim, ninguém nos poderá acusar seja do que for, ninguém poderá dizer mal de nós e a ideia que erradamente muito dos eleitores têm dos partidos, de que tudo isto não passa de um grande cozinhado para todos terem um tacho, pura e simplesmente desaparecerá da mente das pessoas. Refira-se também a mudança de nome e de logotipo do partido, medida que se insere na estratégia de aparecer á frente do eleitorado como um partido novo, com novas ideias, novas pessoas com uma espécie de vontade de trabalhar e de fazer coisas diferentes, embora naturalmente, e convém que isto fique muito bem claro, nós é que continuamos a mandar no partido e o partido serve apenas para “legalmente” atingirmos os nossos objectivos, que são, como sabem, a satisfação dos nossos interesses particulares.
Segunda — Arranjar um programa eleitoral cheio de coisas boas, que os eleitores gostem de ouvir, como por exemplo, garantir empregos e bons ordenados para todos sem trabalhar, excursões diárias para todos os reformados e pensionistas, e já agora, para as criancinhas e para os paizinhos delas, amplas zonas verdes, boas estradas á porta de casa, descontos substancias na mercearia da rua e o direito a beber uns copos por conta do Estado na taberna da esquina, bem alindar todos os largos das capelas existentes. Em off-record, prometer aprovar os projectos imobiliários a todos os patos bravos do sistema, nem que seja em cima do rio, bem como distribuir enormes quantidades de dinheiro a tudo quanto é organização de festas e arrais nas ruas, becos, aldeias e vilas. Toas estas promessas aumentam significativamente a auto-estima dos eleitores, que anda sempre paupérrima, porque na prática nenhum político se preocupa a sério com as pessoas, como já sabem. E assim, deslumbrados com todas estas promessas, os eleitores vão votar em massa no nosso partido. Depois de lá estarmos, outro galo cantará. O nosso, claro está.
— Como vêem, as eleições são para ganhar. — disse Tio Patinhas. — É preciso nunca perder o que eu vou dizer de vista: não se podem dizer as verdades na política. A mentira é o grande trunfo daqueles que querem ser vitoriosos na política. Tem de se enganar o povo. Quanto maior for o engano, mais o povo estará do nosso lado. Ora o que acontece é que, após ganharmos as eleições, não iremos fazer nada daquilo que prometemos. E que desculpa vamos dar? Bom, simplesmente vamos dizer que encontrámos a situação toda de tanga, miserável, que os responsáveis são os governantes anteriores, e á medida que o povo se for apercebendo de que não estamos a cumprir, falamos sempre dos governos anteriores. E como a situação é tão grave, tomaremos medidas drásticas para resolver a crise. Por exemplo, as zonas verdes tem de ser rentabilizadas. Serão urbanizadas, por nós, está claro, algumas passarão mesmo a loteamentos industriais, e quanto mais fábricas existirem, mais nós ganhamos. Não se esqueçam que a qualidade de vida das cidades está na poluição, no metro, na confusão, etc, não é verdade? Senão as pessoas não fugiam cada vez para as cidades. È porque gostam e apreciam viver assim. E as pessoas cada vez mais se concentram nas cidades.
E a conversa continuou pela noite dentro. Eu, encolhido a um canto, assistia a tudo isto de forma serena, questionando-me sobre o motivo de ali estar. A determinada altura ouvi falar no meu nome. E logo a seguir, muitas palmas e vivas. Todos estavam a olhar para mim, sorridentes. Tio Patinhas levou-me para o meio de todos os presentes, e muito solenemente exclamou:
— O Pateta é o nosso melhor candidato. Dificilmente arranjaríamos melhor. Proponho um brinde ao nosso candidato. Viva o Pateta.
— Viva — responderam todos a uma só voz.
Vi-me assim alvo de atenção especial. Nem conseguia articular uma palavra com tudo aquilo que me estava a acontecer. Ser candidato de um partido era um estatuto para todos menos para um Pateta. Mas pelos vistos, estava na moda.
Fui logo avisado de que só podia falar aquilo que eles decidissem. Não podia tomar nenhuma iniciativa sem a sua autorização ou o seu consentimento.
Passei a andar vestido de fato e gravata, o que convenhamos não era tarefa fácil, pois cada vez que andava, pisava sistematicamente a ponta da gravata. Outra coisa horrível para um cão, mesmo da banda desenhada, era o facto de ter de tomar banho todos os dias.
Passava o tempo em chás de caridade, visitava as escolas para oferecer presentes, participava em programas de televisão e rádio e ia para as feiras e mercados beijar peixeiras fedorentas. Tinha que fazer um esforço tremendo de civilidade quando entrava nos talhos, ao ver aquela chicha toda pendurada. Mas o mais estranho foi no dia em que acordei e reparei que toda a cidade tinha cartazes enormes com a minha cara e o símbolo do PPPP em baixo. Parecia que estava metido num enorme jogo de espelhos gigante, pois para onde quer que olhasse dava de caras comigo próprio. A minha cara tinha um olhar simpático e bonito, tal forma terno, que cheguei ao ponto de me sentir muito entusiasmado para votar em mim próprio. O marketing funciona mesmo.
Nesta fase eu andava de certa forma entusiasmado, e cheguei a convencer-me que iria mudar tudo o que estivesse ao meu alcance para melhorar a vida de toda a gente.
E assim foram passando os dias, em ritmo alucinante, rumo ao dia das eleições. Aproximou-se então o dia D, o dia do grande comício/festa, onde iria fazer um enorme discurso, naturalmente escrito pelos patrocinadores da minha candidatura. Nesse dia, todas as atenções estavam viradas para mim, não porque eu fosse um ser especial, mas porque toda a gente tinha medo que eu não desempenhasse o papel que me tinham destinado. Passei horas na sede do PPPP a decorar o discurso que tinham elaborado para mim, e fui massacrado, acho que é o termo correcto, com atitudes a ter no palco durante o discurso, bem como a entoação da voz, as pausas certas no momento certo e sobretudo referir determinados assuntos que toda a gente gosta de ouvir e que sensibiliza os seus corações. Por fim, chegou a hora. Uma multidão inundava o pavilhão das actividades económicas onde se ia desenrolar o comício, com bandeirinhas e cartazes de apoio. A primeira parte do comício foi preenchida por um concerto musical, com um grupo da chamada música pimba. No intervalo interveio o Tio Patinhas, com um discurso de apresentação do candidato, que era nem mais nem menos do que a minha própria pessoa. Foi então que comecei a ouvir ruidosamente o meu nome, “Pateta, Pateta, Pateta”. Muito nervoso, e com o discurso escrito na minha mão direita, encaminhei-me para o centro do palco, sob um enorme aplauso vindo da multidão. Quando me preparava para começar a falar, sem saber como, o meu olhar cruzou-se com o olhar de uma criança. Um olhar terno, doce, de quem acredita que eu seria a pessoa disposta a contribuir para o seu futuro, um futuro de felicidade. Um olhar que é igual numa criança da minha cidade, do Iraque, da América Latina, de Moçambique, sei lá mais onde. Um olhar de esperança. Um sentimento de profunda angústia percorreu o meu espírito, perturbando-me gravemente. Afinal tinha sido inventado para divertir as crianças, e agora estava preparado para as enganar. Lentamente, amachuquei o papel que tinha na mão, olhei firmemente para frente, e em tom sereno resolvi aproveitar a minha única oportunidade para despejar tudo aquilo que me ia na alma. E comecei a discursar:
Caros amigos:
Existem várias razões para muita gente se envolver na política. Mas em primeiro lugar estão sem dúvida os grandes privilégios que a chamada carreira política permite àqueles que a seguem. E a ganância hoje é tão grande entre os políticos para poderem usufruir dos maiores privilégios, que na política abdicou-se à largos anos da integridade de carácter e honradez, sendo estes dois preciosos valores substituídos pela mentira, pela difamação e pela traição. Hoje não vos quero mentir. As crianças não merecem que eu comprometa o seu presente e o seu futuro. Vou falar-vos pelo coração e não vos vou enganar, conforme estava planeado. Todos na política sabem que as eleições só se ganham pela compra da consciência com o dinheiro, muitas vezes sujo, ou pela promessa falsa, pela mentira e pela demagogia. Não irei fazer isso, e possivelmente será o fim da efémera carreira política que me estava destinada. Mas não estou preocupado. A minha consciência não está nem nunca esteve à venda. Ao longo da campanha eleitoral senti-me como se estivesse a navegar no cano do esgoto dos interesses, da ambição e da conveniência. Num dia dizia uma coisa, orientado pelo Marketing, no outro dia negava tudo e prometia o contrário. Embora o discurso fosse pincelado aqui e acolá com novas palavras, o que é certo é que as ideias eram sempre as mesmas. Há largos anos que as ideias são sempre as mesmas, poucas e pequenas, o que demonstra bem o quanto os políticos se estão nas tintas para de facto contribuírem para o desenvolvimento harmonioso todos nós. Só existe uma diferença entre os diversos partidos: a intriga, o grande pilar da luta partidária. E é exactamente por termos este tipo de política, que se pode perfeitamente classificar de política de trampa, que constatamos esta realidade.
O que faz com que este país mantenha orgulhosamente um atraso significativo em relação aos outros países europeus, não é, como na teoria supostamente seria, a localização geográfica, a qualidade da água, o sol, etc, etc, etc. O que nos distingue significativamente dos outros países é uma coisa chamada liderança. Ou seja, os outros países tiveram, nos últimos 50 anos, líderes que sabiam o queriam, tinham projectos, e desenvolveram os seus países para níveis que para nós fazem parte do reino da ficção científica. Nós, nos últimos 50 anos, não tivemos lideres, tivemos apenas tachistas. Fomos liderados por pessoas, que hoje são classificadas como pessoas importantes, apenas e só porque ocuparam lugares importantes. Em vez de projectos e de trabalho, geriram este país como se ele fosse uma mercearia do século XII.
A política, que deveria ser participada por todos os cidadãos, é um negócio de "empresas" com o título pomposo de partidos políticos, cujos principais objectivos são satisfazer os interesses daquilo que hoje é vulgar designar por "lobbie" partidário, ou seja, garantir a todos os "boy's", "girl's", afilhados, afilhadas, padrinhos e todo o tipo de "deliquentes do tacho", presentes e futuros risonhos à custa dos nossos impostos.
— Eh pá, eu nem acredito naquilo que estou a ouvir — disse um homem que estava embasbacado a ouvir Pateta.
— Até que enfim que alguém diz as verdades, caramba — ouviu-se uma mulher de aspecto estranho.
E Pateta continuava:
... A política tem sido apenas a gestão "do tacho para os amigos e compadres". Por isso, continuamos com a Saúde que temos, "doente" há vários anos, mas que mesmo assim dá muita "saúde" a pequenas elites sociais. Continuamos a ter padrões ao nível da Educação que rondam valores aproximados do "zero", mas que sustentam, ao nível privado, pequenas elites sociais. Vejam por exemplo, as riquezas que surgiram ligadas à exploração de colégios privados, sustentados pelo Estado, ou seja por todos nós. Hoje, e em cada dia que passa, vivemos a angústia permanente de ser cidadão, de não saber nada sobre o rumo que o país segue, de não poder programar a nossa vida, porque hoje temos um ministro que pensa assim, no outro dia pensa assado, no outro dia pensa cozido, no outro dia pensa frito, tudo consoante os interesses de "grupo" do momento. O curioso é que, constatando que a vida está cada vez mais difícil para todos os cidadãos, os políticos continuam a ter uma vida "à grande e à francesa", indiferentes às dificuldades de todos nós.
Votar hoje é apenas e só "legalizar" os tachos de deputados, ministros, secretários de estado, assessores disto e daquilo, directores, presidentes de tudo e mais um par de botas, sempre escolhidos de acordo com os interesses do partido e não de todos nós, sempre escolhidos não pelo mérito e competência, mas pelo compadrio e "interesses instalados". Votar significa "legalizar" que cidadãos com problemas com a justiça, sejam deputados para fugirem á própria justiça (lindo exemplo, que contentes que ficamos ao ver os nossos queridos impostos sustentarem charlatões deste calibre), que deputados apresentem baixas médicas para irem trabalhar para empresas do Estado e depois a Lei seja violada para garantir um belo tacho numa embaixada. Eu pergunto: quem tem legitimidade para nos obrigar a cumprir a Lei?
Votar significa "legalizar" que se premeie com cargos públicos, pagos por todos nós, o esforço "desinteressado(!!!)" dos rapazinhos e rapariguinhas que andaram a colar cartazes do partido, sem experiência de vida e maturidade, para terem assim um futuro garantido e o partido poder ficar mais descansado quanto ao aspecto de ter sempre mão de obra barata e disponível.
Sinceramente, não estão cansados de sustentar esta "trampa" toda? É assim a nossa democracia, A DEMOCRACIA DOS TACHOS!... Sabem qual é o partido político com mais futuro? O partido da abstenção. Será porque a populaça é muito ignorante, ou será que tem a ver com a qualidade, honestidade, competência e bons exemplos da classe politica?
— Mas porque será que só os patetas é que dizem as verdades? — perguntou outra pessoas que estava admirada com o discurso de pateta.
... A populaça não serve só para sustentar os políticos e amiguinhos... Quem liquidou a agricultura, desertificou o interior do país e promoveu o caos urbano? Foram os cidadãos tributáveis? Ou foram os políticos, todos sem excepção?
Os partidos políticos são o maior cancro da democracia neste país. Nas eleições, todos os programas são uma mentira. A campanha eleitoral traduz-se na maior festa da hipocrisia social. De repente, os políticos lembram-se da "populaça". Depois de eleitos, nunca mais se lembram do programa, nem se acham obrigados a cumprir, pelo contrário, consideram-se dispensados de tal. Porquê? Porque a partir daí, os nossos democratas esmeram-se a tirar "proveito" do sistema e a colocar os afilhados e afilhadas nos lugares certos, para governarem mais à vontade. Não se iludam. Por detrás desta máquina infernal de propaganda, cheia de falsas promessas, estão meia dúzia de pessoas interessadas apenas em dominar o poder, com o objectivo de concretizar as suas negociatas. Com os nossos recursos, com o nosso dinheiro. Talvez por isso seria bom pensar nisto: não é alternando de partido que se muda seja o que for. Eles são todos iguais, porque no seu intimo todos querem o mesmo: o poder. O que nós temos de mudar é este sistema falso de democracia, em que somos iludidos com as vãs promessas de que somos nós que decidimos, que mandamos. Só há uma solução: não votar, não alimentar este sistema. Assim ele morre por falta de alimento. E é isso que eu vos peço: não votem.
Foi nesta altura que aconteceu algo estranho e inesperado. Ouviu-se um estrondo e todo o palco ficou às escuras. Tinham desligado a energia.
Ao mesmo tempo senti uma pancada fortíssima na cara, seguida instantaneamente de uma forte dor no olho esquerdo, sinal que tinha levado um murro muito forte, que me mandou a rebolar pelo palco fora. E ouvi a voz do Tio Patinhas, em surdina dizer:” Meu moleque safado, se pire da minha vista de vez.”
Toda a multidão se foi afastando aos poucos, e eu fiquei sozinho, aleijado, apenas porque resolvi dizer as verdades...

«Mas, por acaso alguém me pode dizer o que se passa aqui? Por acaso eu autorizei alguém a participar neste projecto literário? Aproveitam-se da minha ausência para se porem aqui a participar sem a minha autorização? Sr Pateta, agradeço que não volte a repetir a gracinha, ainda por cima, eu não tenho intenção de ir contra o sistema vigente, pois nunca se sabe se não precisarei dele. O Senhor foi indelicado e abusou da minha boa vontade. Não tenho e nunca tive intenção de o convidar a participar nesta história, pelo que mais uma vez agradeço o favor de se pôr a andar o mais depressa possível.
Safa, que um tipo até pode ter um ataque ao descobrir intromissões desta natureza.
Bom, adiante. Vamos lá tentar pôr ordem na casa. Apesar deste percalço insignificante, vou tentar criar outra história, mais actual e por isso mais do interesse dos leitores em geral. Não é fácil, não senhor. Vejamos... Ah, já sei, já me lembro do conto que pretendo para continuar este projecto. Vamos lá, mãos à obra.»