— São pelo menos trinta metros de altura — pensou, olhando a enorme massa de água que corria lá em baixo.
Pendurado na estrutura metálica da ponte, olhava o rio que banhava a cidade e que tão boas recordações da infância lhe trazia. Tinha planeado para esta noite aquilo que para si era o maior acto de liberdade do ser humano. A sua ansiedade era enorme, porque não sabia se iria ter sucesso ou não. De qualquer forma, mesmo que ninguém aderisse, iria fazê-lo sozinho.
A noite estava agradável. Uma suave brisa envolvia a sua cara, criando um cenário impróprio para a aventura, se é que se pode chamar assim, que iria praticar nesta noite.
Lembrou-se da sua mãe, que naturalmente estaria, naquele momento, inquieta pela sua ausência.
Foi criado pela mãe, que sempre foi mãe e pai para ele. Trabalhou de sol a sol para que o seu filho tivesse tudo e que nunca lhe faltasse nada. De dia trabalhava na fábrica das redes e à noite ainda ia fazer limpezas ao escritório de uma multinacional. Isto levou-o a passar muito tempo sozinho, o que nem sempre foi positivo, pois foi também a necessidade de ultrapassar a solidão que o levou a procurar caminhos que o levaram ao lamaçal da vida. Sente neste momento que nem sempre foi justo e reconhecido à dedicação e ao amor da sua mãe. Afinal de contas, ela fez mais do que podia para que a sua vida fosse de outra forma.
Do seu pai, ou melhor, do seu progenitor, porque pai é muito mais do que participar na criação, poucas recordações tem. Em determinada altura preocupou-se em conhecê-lo, mas o seu progenitor nunca se interessou. Era como se nunca tivesse existido.
Apesar disso, sua mãe nunca disse uma palavra contra ele, nunca o incentivou a ser contra o progenitor.
Uma vez encontrou-se com ele, mas o sentimento de abandono veio ao de cimo, e nunca mais o quis ver. Há uma fase na nossa vida em que os nossos pais são os nossos ídolos. Nunca tinha sentido isso, e para ele sempre foi uma sensação estranha ver o progenitor. Não fazia parte do seu mundo. Não lhe dizia nada, e era uma coisa muito esquisita quando ouvia os colegas falarem entusiasmados dos seus pais. Ao mesmo tempo sentia-se inferiorizado e deslocado no grupo de amigos, pois era o único que parecia ter nascido de uma relação assexuada. Desse tempo guarda uma profunda mágoa.
Nessa altura, na escola, começou a ter os primeiros problemas sérios da sua existência. Começou a ter uma apetência quase natural para só fazer asneiras, e quanto às aulas a vontade era nula. Conflitos em casa era todos os dias. Foi um tempo em que muita gente se metia na droga, e sentindo-se um pouco desamparado, lá caíu nessa asneira também. Chumbou. Lá em casa as coisas tornaram-se insuportáveis. A mãe já não lhe falava, gritava a toda a hora. Para mais, ele começou a roubar-lhe algum dinheiro e a vender algumas peças de decoração que havia lá em casa, para sustentar o vício, o que ainda agudizou mais o ambiente familiar. Na escola, foi parar a uma turma que era somente a pior turma, com pessoal de dezoito, dezanove anos, todos repetentes. Se na altura ele já tinha um comportamento difícil, a partir daí tornou-se um autêntico marginal. Foi quando decidiu sair de casa, dormindo pelas ruas, arrumando automóveis na baixa da cidade. Tudo o que ganhava gastava na droga.
— Devia ter morrido nessa altura — pensou.
Foi quando a conheceu. Primeiro um simples contacto visual. Ela estacionava o carro, dava-lhe uma moeda, e no inicio era apenas mais uma pessoa das centenas que por ali arrumavam os seus automóveis. Mais tarde, uma troca breve de palavras, face já a um certo hábito matinal e vespertino, o que aumentou a intimidade entre ambos, Depois um café juntos, mais tarde, no final do dia uma cerveja e uma conversa mais relaxada, sem pressas e sem stress. Um dia, depois de terem bebido umas bejecas ao fim da tarde, o desejo súbito de um passeio ao longo da margem do rio. De um lado, a calma das águas frias, salpicadas apenas ao longe por um navio deslocado. Do outro lado, o rebuliço da cidade em hora de ponta. Foi quando deram pela primeira vez as mãos, e se olharam mais profundamente.
Soube logo nessa altura que nunca mais seria o mesmo.
A partir daí, a relação foi subindo de temperatura. Começou a frequentar a casa dela. Vivia sozinha, vinha de uma relação amorosa fracassada, estava de certa forma carente, e ele tinha sido a coisa mais fantástica que lhe tinha acontecido. Meteu logo na sua cabeça que tinha de mudar completamente a sua vida, dar uma volta de cento e oitenta graus. Largou a vida degradante que levava, voltou para casa da mãe, e matriculou-se novamente na escola, à noite.
Começou a procurar um trabalho decente que lhe permitisse sonhar construir uma vida a dois, com ela. Não foi fácil, aliás foi de facto a parte mais difícil. Entregar pizzas ao domicilio foi o que se arranjou. Foram tempos muito duros. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Pensou em desistir, mas por um lado precisava do dinheiro para poder manter uma vida com alguma estabilidade.
Por outro lado tinha de continuar os estudos, sobretudo por causa dela, que era formada e tinha um excelente emprego numa empresa privada de grande implantação no país. Tinha que mostrar a ela e aos outros que tinha capacidade, que era capaz de vencer na vida.
A certa altura sentiu que a relação com ela tinha perdido algum entusiasmo, mas atribuíu essa quebra à vida atribulada que levava. Ela, por vezes, nem sempre estava disponível para se encontrar consigo, desculpando-se com afazeres da empresa.
Um dia, a bomba estoirou. “Tinha sido muito bom, foi muito importante para ela naquela fase difícil da sua vida, eu era uma pessoa muito generosa, como eu existiam poucos, que nunca o esqueceria na vida, só que tinha chegado à conclusão que a relação não dava, havia um grande fosso intelectual entre ambos, e além do mais, a pessoa da sua relação anterior, a tal que a tinha colocado muito carente e se não fosse eu não saberia como tinha aguentado tamanho desgosto, tinha reconsiderado e agora pretendia uma reconciliação e uma vida a dois mais séria e envolvente. E ela tinha pensado muito e chegado á conclusão que o seu coração ainda estava do lado dessa pessoa, pelo que não valia a pena insistir naquilo que não teria futuro. Seria sempre sua amiga, claro está, sempre que precisasse de alguma coisa era só dizer.”
E assim, sem mais nem menos, com um largo sorriso, virou-me as costas e nunca mais a vi até hoje.
Um tipo não é de ferro. Sentiu que tudo ia por água a baixo, nada do que tinha feito, de todo o esforço para mudar e melhorar a vida, fazia sentido. Perdeu-se um bocado, foi para a noite. Nunca se deitava antes das sete da manhã. Voltaram os problemas em casa, o emprego das pizzas foi-se e acabou a trabalhar num bar nocturno de ambiente degradante. Conheceu gente do arco-da-velha, gente que não interessa a ninguém. E foi então que a coisa se complicou. Uma noite, já o pessoal estava todo com os copos, uma malta, cliente habitual do bar, convidou-o para dar um passeio. Chegados a uma zona residencial, onde existiam umas lojas, encostaram o carro e pediram para aguardar um pouco, pois tinham de ir dar um recado a uma pessoa amiga que vivia num daqueles prédios. Ficou dentro do carro e de repente ouviu uma sirene estridente, uma gritaria infernal, e quando deu por si, estavam dois polícias ao pé do carro a pedir-lhe para os acompanhar. Os seus amigos nunca mais os viu, soube mais tarde que estavam a assaltar uma das lojas. O carro era roubado, e ele, por mais que jurasse a sua inocência, não conseguiu que alguém acreditasse nele. Foi passar uns tempos ao xelindró. A sua mãe ia morrendo de vergonha. Foi a pior experiência de toda a sua vida. Pediu à mãe para a procurar, pois ela tinha bons conhecimentos e podia ajudá-lo. A resposta veio dois dias depois. Que não se lembrava de ter conhecido ninguém parecido com ele, que deveria haver algum engano, naturalmente. Quando saíu, o mundo estava definitivamente ao contrário. Procurou arranjar trabalho, mas o mais que conseguiu foi numas bombas de gasolina. Mas quando descobriram que era um ex-presidiário, alegaram que estavam fartos de ser assaltados, que poderia ser um informador, e como tal o melhor era pôr-se ao fresco antes que a coisa se complicasse. E ele, como complicações já tinha que chegasse, veio-se embora, revoltado com tudo e todos. Os dias passaram a ser em total isolamento, fechado em casa. Pouco saía, não queria contactar com ninguém. O silêncio era enorme, apenas quebrado pela angústia da sua mãe. A sua existência passou apenas a ter uma duvida: para quê viver?
Foi quando lhee deu para esta coisa da internet. E lembrou-se deste desafio. Estaria sozinho nesta angustia?
“Aqui estou, empoleirado nesta ponte à espera da resposta à minha dúvida. O e-mail era claro e objectivo. Seria bom que alguém viesse, ou melhor, seria muito mau. Afinal de contas, ninguém vive para este desfecho. Mas quando nunca se foi feliz, não se é, e o mais provável é que nunca se seja, para quê adiar isto? Não passará de hoje, ao menos no meu destino quero mandar eu.”
Começei a ouvir passos. Eram várias pessoas, pelo barulho descompassado que se sentia. Ouvi uma voz ao longe:
— Patinho Feio?! Estás aí?
E mais passos, agora cada vez mais perto.
— Patinho Feio?! Estás aí?
Fiquei aterrado e ao mesmo tempo feliz, que coisa estranha. Mal consegui balbuciar:
— Estou aqui... aqui mesmo!
E de repente comecei a ver-me rodeado de muita gente, nova como eu, com os aspectos mais diferentes que já alguma vez tinha visto. E todos falavam ao mesmo tempo:
— Patinho Feio, és tu? Viemos ao teu encontro, conforme pediste. Queremos ser tão dignos como tu de escolher o nosso futuro.
Eu não conseguia esconder a cara de surpresa que tinha. Nunca pensei que a minha mensagem tivesse tantos adeptos.
— Mas... quem são vocês?
— Jovens como tu, desenraizados, inadaptados, incompreendidos, e sobretudo, não amados. — responderam em uníssono.
Talvez por ver a minha cara de espanto, uma rapariga adiantou-se e disse-me:
— Chamo-me Ana ou Marta, ou ainda Madalena ou Carolina. Tenho vários nomes e ao mesmo tempo não sou ninguém. Não penses que és só tu que anseias pela liberdade e pelo amor. Fiquei sem pai e mãe desde muito cedo, aliás nem me lembro muito bem deles. Quem ficou a cuidar de mim foi uma tia, que passava o tempo a bater-me e a rogar pragas pelo facto de me ter a seu cargo. Vivi durante anos num estado de medo permanente, em constante sobressalto. Cresci assim, e fui desenvolvendo uma certeza: não iria aguentar para toda a vida este inferno. Um dia conheci um rapaz, que me prometeu este mundo e o outro, e me deslumbrou com os seus conhecimentos e o seu charme. Lembro-me com afecto dos encontros secretos debaixo do grande plátano que existia no centro da minha aldeia, testemunha dos primeiros beijos e das primeiras carícias. Nesse plátano ficaram gravados a canivete corações atravessados por setas jurando amor eterno. Um dia fugimos para a grande cidade. No horizonte, grandes sonhos de felicidade e de vida próspera. Os primeiros tempos foram vividos na rua. Como éramos jovens e apaixonados enfrentávamos a vida com um sorriso nos lábios. Ele trabalhava nas obras e eu ia para os parques dos hipermercados arrumar carrinhos. Começámos a ter alguns amigos, todos marginais da vida, como nós éramos, e ao fim de uns tempos, convidaram-nos a ir viver com eles, numa casa desabitada e completamente degradada. Apesar de ser mais parecida com uma lixeira do que propriamente com uma casa, foi o nosso primeiro tecto, onde partilhámos bons momentos e alguns menos bons. Mas o destino acabou por ser outro. O que ficou da relação foi uma gravidez inesperada. Perante esta responsabilidade, ele desapareceu e nunca mais o vi. Acabei por ser abandonada por ele e pelos seus amigos. Com um filho nos braços para criar como futuro próximo, senti na pele a solidão angustiante de quem nunca teve, não tem e nunca terá nada da vida a não ser ilusões e sonhos efémeros. Senti o desespero de não saber para onde ir nem a quem pedir ajuda. Voltar para a minha aldeia, junto da minha tia estava fora de questão. Ao deambular sem sentido pelas ruas da cidade tendo como solução no horizonte pôr fim à vida, encontrei uma antiga colega quando arrumava carrinhos nos hipermercados. Por seu intermédio acabei por ser acolhida numa casa de passe, passando a conviver com outras mulheres, que vendendo prazer e ilusões recebiam como pagamento o infortúnio da vida. Ali fazia os trabalhos da manutenção da casa, como a limpeza e a comida. E foram elas que me deram solução para a minha gravidez, que, na opinião delas, só me iria complicar a vida. A criança mal nasceu, tinha à sua espera um casal de estrangeiros, futuros pais adoptivos do meu filho, que eu nunca mais vi. Uma parte de mim, a mais importante, desapareceu. Foi e é a maior mágoa da minha vida, uma mágoa profunda e dilacerante, que nunca mais me abandonou, e que me fez sentir que a vida às vezes não devia valer, devia ser como um gravador de cassetes, deveria ter uma tecla para andar para trás a fita e gravar de novo. Passei a “trabalhar” como as outras raparigas. Mas eu, que vendia prazer, quem me dava prazer a mim, quem me acarinhava e ajudava a suportar esta dor, esta angústia? A vida deixou de ter sentido, definitivamente. Ouvi o teu apelo e estou aqui para ser solidária contigo e partilhar contigo a decisão que tomaste para esta noite e que é minha também.
Ia chegando cada vez mais gente anónima, em silêncio.
— Eu chamo-me Zé, um nome vulgar e sem importância. Ou melhor, eu é que não tenho importância. Sou filho de emigrantes, nasci naquilo que hoje se chama um bairro problemático. A minha mãe abandonou-me aos quatro anos, farta de levar porrada do meu pai. Fiquei aos cuidados dele, que estava sempre bêbado e sem emprego certo. Por isso muitas vezes não havia comida na mesa, apenas porrada atrás de porrada. Quando entrei na escola, aos seis anos, talvez pelo exemplo e pelo ambiente diário que tinha em casa, comecei a demonstrar toda a minha agressividade, batendo não só nos colegas, mas também na professora. Era a forma de me afirmar. É claro que isto não iria durar muito, não porque a escola conseguisse modificar-me, mas porque comecei a faltar com frequência. Convivia nessa altura com um grupo de vizinhos que tinham formado um gang cuja especialidade era assaltar tudo o que aparecesse à frente, e isto tudo me seduzia. Comecei a fumar e andar à boleia na vida da marginalidade e do crime. Ao principio eram só assaltos a carros. Fui preso várias vezes, mas como era menor, acabava por não ter grandes chatices. Mais tarde pratiquei assaltos à mão armada a bombas de gasolina e ourivesarias. Acabei por ser preso. Na prisão, em vez de me corrigir, aprofundei os meus conhecimentos, não só na arte do crime, como conhecimentos e influências que me ajudariam depois de sair da pildra. Cá fora, quem é que se interessa em dar um emprego a um ex-presidiário? A tentação é grande e com os conhecimentos adquiridos, dediquei-me ao tráfico de droga. Fui preso novamente. E tem sido sempre assim, mais tempo na prisão do que cá fora. Faz sentido? Desperdicei a minha vida, não vejo horizontes positivos no horizonte a não ser as grades da prisão. A vida assim não vale a pena, pelo que tendo conhecimento da tua proposta, resolvi adoptá-la para mim próprio. Cá estou, conta comigo.
— Poderá uma paixão de adolescente durar uma vida inteira? — questionou um homem que trazia uma camisola onde se podia ler “Homem Sem Nome”. — Eu queria acreditar que sim, mas hoje vejo que é uma utopia demente acreditar nisso. Foi sempre a minha paixão. Porém nunca nada estava bem. Hoje era isto, amanhã aquilo, no outro dia outra coisa qualquer. A minha luta diária era agradar para segurar aquele que era o amor da minha vida. Acabei por dar cabo de mim e dos que me rodeavam. Perdi tudo, a família, os amigos, a paz interior, a oportunidade de ser feliz. Hoje deixei um poema escrito:
Devo crer...
Que o amor é fogo
Que arde sem se ver?
Então...
Como ter um incêndio que dilate o meu ser?
Então...
Como fazer
Para pôr o meu peito a arder
Se com o teu olhar
Frio ao amanhecer
Me sinto lentamente
A desfazer...
— A poesia, sim a poesia... — murmurou a multidão baixinho.
Ouviu-se uma outra voz, dispersa, ao longe, declamando:
De repente
Fugi da “gente”
Como quem mente
Perdidamente
Para te desejar ardentemente
Um Natal diferente
Onde o espírito prepotente
E a calúnia indecente
Deixem de existir finalmente.
De repente
Olho desesperadamente
Para um “Carnaval” demente
De fachada inconsistente
E de pobreza imponente.
Desejar-te tristemente
Uma alegria impotente
Para tentares viver alegremente
Numa vida inconsequente
È a minha angústia, exactamente
Uma outra voz se ergueu:
O sofrimento
foi lançado à multidão
Com o pequeno gesto
De uma mão
Consumir desalmadamente
É a razão
Imaginar a felicidade
É a ilusão
O futuro da podridão
É o lucro até mais não
A droga transformou-os em solidão
Na violência perdeu-se um irmão
Ganhou-se o desespero
Da prostituição
Ficaram os náufragos da civilização
E a vida é uma desilusão
Uma total desilusão...
— Uma total desilusão... — repetiu Patinho Feio.
Cada vez chegavam mais pessoas, em silêncio.
Aos poucos foram dando as mãos, formando um cordão humano, silencioso. Olharam-se nos olhos, e então, num gesto colectivo, saltaram todos. Sem excepção.
Pendurado na estrutura metálica da ponte, olhava o rio que banhava a cidade e que tão boas recordações da infância lhe trazia. Tinha planeado para esta noite aquilo que para si era o maior acto de liberdade do ser humano. A sua ansiedade era enorme, porque não sabia se iria ter sucesso ou não. De qualquer forma, mesmo que ninguém aderisse, iria fazê-lo sozinho.
A noite estava agradável. Uma suave brisa envolvia a sua cara, criando um cenário impróprio para a aventura, se é que se pode chamar assim, que iria praticar nesta noite.
Lembrou-se da sua mãe, que naturalmente estaria, naquele momento, inquieta pela sua ausência.
Foi criado pela mãe, que sempre foi mãe e pai para ele. Trabalhou de sol a sol para que o seu filho tivesse tudo e que nunca lhe faltasse nada. De dia trabalhava na fábrica das redes e à noite ainda ia fazer limpezas ao escritório de uma multinacional. Isto levou-o a passar muito tempo sozinho, o que nem sempre foi positivo, pois foi também a necessidade de ultrapassar a solidão que o levou a procurar caminhos que o levaram ao lamaçal da vida. Sente neste momento que nem sempre foi justo e reconhecido à dedicação e ao amor da sua mãe. Afinal de contas, ela fez mais do que podia para que a sua vida fosse de outra forma.
Do seu pai, ou melhor, do seu progenitor, porque pai é muito mais do que participar na criação, poucas recordações tem. Em determinada altura preocupou-se em conhecê-lo, mas o seu progenitor nunca se interessou. Era como se nunca tivesse existido.
Apesar disso, sua mãe nunca disse uma palavra contra ele, nunca o incentivou a ser contra o progenitor.
Uma vez encontrou-se com ele, mas o sentimento de abandono veio ao de cimo, e nunca mais o quis ver. Há uma fase na nossa vida em que os nossos pais são os nossos ídolos. Nunca tinha sentido isso, e para ele sempre foi uma sensação estranha ver o progenitor. Não fazia parte do seu mundo. Não lhe dizia nada, e era uma coisa muito esquisita quando ouvia os colegas falarem entusiasmados dos seus pais. Ao mesmo tempo sentia-se inferiorizado e deslocado no grupo de amigos, pois era o único que parecia ter nascido de uma relação assexuada. Desse tempo guarda uma profunda mágoa.
Nessa altura, na escola, começou a ter os primeiros problemas sérios da sua existência. Começou a ter uma apetência quase natural para só fazer asneiras, e quanto às aulas a vontade era nula. Conflitos em casa era todos os dias. Foi um tempo em que muita gente se metia na droga, e sentindo-se um pouco desamparado, lá caíu nessa asneira também. Chumbou. Lá em casa as coisas tornaram-se insuportáveis. A mãe já não lhe falava, gritava a toda a hora. Para mais, ele começou a roubar-lhe algum dinheiro e a vender algumas peças de decoração que havia lá em casa, para sustentar o vício, o que ainda agudizou mais o ambiente familiar. Na escola, foi parar a uma turma que era somente a pior turma, com pessoal de dezoito, dezanove anos, todos repetentes. Se na altura ele já tinha um comportamento difícil, a partir daí tornou-se um autêntico marginal. Foi quando decidiu sair de casa, dormindo pelas ruas, arrumando automóveis na baixa da cidade. Tudo o que ganhava gastava na droga.
— Devia ter morrido nessa altura — pensou.
Foi quando a conheceu. Primeiro um simples contacto visual. Ela estacionava o carro, dava-lhe uma moeda, e no inicio era apenas mais uma pessoa das centenas que por ali arrumavam os seus automóveis. Mais tarde, uma troca breve de palavras, face já a um certo hábito matinal e vespertino, o que aumentou a intimidade entre ambos, Depois um café juntos, mais tarde, no final do dia uma cerveja e uma conversa mais relaxada, sem pressas e sem stress. Um dia, depois de terem bebido umas bejecas ao fim da tarde, o desejo súbito de um passeio ao longo da margem do rio. De um lado, a calma das águas frias, salpicadas apenas ao longe por um navio deslocado. Do outro lado, o rebuliço da cidade em hora de ponta. Foi quando deram pela primeira vez as mãos, e se olharam mais profundamente.
Soube logo nessa altura que nunca mais seria o mesmo.
A partir daí, a relação foi subindo de temperatura. Começou a frequentar a casa dela. Vivia sozinha, vinha de uma relação amorosa fracassada, estava de certa forma carente, e ele tinha sido a coisa mais fantástica que lhe tinha acontecido. Meteu logo na sua cabeça que tinha de mudar completamente a sua vida, dar uma volta de cento e oitenta graus. Largou a vida degradante que levava, voltou para casa da mãe, e matriculou-se novamente na escola, à noite.
Começou a procurar um trabalho decente que lhe permitisse sonhar construir uma vida a dois, com ela. Não foi fácil, aliás foi de facto a parte mais difícil. Entregar pizzas ao domicilio foi o que se arranjou. Foram tempos muito duros. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Pensou em desistir, mas por um lado precisava do dinheiro para poder manter uma vida com alguma estabilidade.
Por outro lado tinha de continuar os estudos, sobretudo por causa dela, que era formada e tinha um excelente emprego numa empresa privada de grande implantação no país. Tinha que mostrar a ela e aos outros que tinha capacidade, que era capaz de vencer na vida.
A certa altura sentiu que a relação com ela tinha perdido algum entusiasmo, mas atribuíu essa quebra à vida atribulada que levava. Ela, por vezes, nem sempre estava disponível para se encontrar consigo, desculpando-se com afazeres da empresa.
Um dia, a bomba estoirou. “Tinha sido muito bom, foi muito importante para ela naquela fase difícil da sua vida, eu era uma pessoa muito generosa, como eu existiam poucos, que nunca o esqueceria na vida, só que tinha chegado à conclusão que a relação não dava, havia um grande fosso intelectual entre ambos, e além do mais, a pessoa da sua relação anterior, a tal que a tinha colocado muito carente e se não fosse eu não saberia como tinha aguentado tamanho desgosto, tinha reconsiderado e agora pretendia uma reconciliação e uma vida a dois mais séria e envolvente. E ela tinha pensado muito e chegado á conclusão que o seu coração ainda estava do lado dessa pessoa, pelo que não valia a pena insistir naquilo que não teria futuro. Seria sempre sua amiga, claro está, sempre que precisasse de alguma coisa era só dizer.”
E assim, sem mais nem menos, com um largo sorriso, virou-me as costas e nunca mais a vi até hoje.
Um tipo não é de ferro. Sentiu que tudo ia por água a baixo, nada do que tinha feito, de todo o esforço para mudar e melhorar a vida, fazia sentido. Perdeu-se um bocado, foi para a noite. Nunca se deitava antes das sete da manhã. Voltaram os problemas em casa, o emprego das pizzas foi-se e acabou a trabalhar num bar nocturno de ambiente degradante. Conheceu gente do arco-da-velha, gente que não interessa a ninguém. E foi então que a coisa se complicou. Uma noite, já o pessoal estava todo com os copos, uma malta, cliente habitual do bar, convidou-o para dar um passeio. Chegados a uma zona residencial, onde existiam umas lojas, encostaram o carro e pediram para aguardar um pouco, pois tinham de ir dar um recado a uma pessoa amiga que vivia num daqueles prédios. Ficou dentro do carro e de repente ouviu uma sirene estridente, uma gritaria infernal, e quando deu por si, estavam dois polícias ao pé do carro a pedir-lhe para os acompanhar. Os seus amigos nunca mais os viu, soube mais tarde que estavam a assaltar uma das lojas. O carro era roubado, e ele, por mais que jurasse a sua inocência, não conseguiu que alguém acreditasse nele. Foi passar uns tempos ao xelindró. A sua mãe ia morrendo de vergonha. Foi a pior experiência de toda a sua vida. Pediu à mãe para a procurar, pois ela tinha bons conhecimentos e podia ajudá-lo. A resposta veio dois dias depois. Que não se lembrava de ter conhecido ninguém parecido com ele, que deveria haver algum engano, naturalmente. Quando saíu, o mundo estava definitivamente ao contrário. Procurou arranjar trabalho, mas o mais que conseguiu foi numas bombas de gasolina. Mas quando descobriram que era um ex-presidiário, alegaram que estavam fartos de ser assaltados, que poderia ser um informador, e como tal o melhor era pôr-se ao fresco antes que a coisa se complicasse. E ele, como complicações já tinha que chegasse, veio-se embora, revoltado com tudo e todos. Os dias passaram a ser em total isolamento, fechado em casa. Pouco saía, não queria contactar com ninguém. O silêncio era enorme, apenas quebrado pela angústia da sua mãe. A sua existência passou apenas a ter uma duvida: para quê viver?
Foi quando lhee deu para esta coisa da internet. E lembrou-se deste desafio. Estaria sozinho nesta angustia?
“Aqui estou, empoleirado nesta ponte à espera da resposta à minha dúvida. O e-mail era claro e objectivo. Seria bom que alguém viesse, ou melhor, seria muito mau. Afinal de contas, ninguém vive para este desfecho. Mas quando nunca se foi feliz, não se é, e o mais provável é que nunca se seja, para quê adiar isto? Não passará de hoje, ao menos no meu destino quero mandar eu.”
Começei a ouvir passos. Eram várias pessoas, pelo barulho descompassado que se sentia. Ouvi uma voz ao longe:
— Patinho Feio?! Estás aí?
E mais passos, agora cada vez mais perto.
— Patinho Feio?! Estás aí?
Fiquei aterrado e ao mesmo tempo feliz, que coisa estranha. Mal consegui balbuciar:
— Estou aqui... aqui mesmo!
E de repente comecei a ver-me rodeado de muita gente, nova como eu, com os aspectos mais diferentes que já alguma vez tinha visto. E todos falavam ao mesmo tempo:
— Patinho Feio, és tu? Viemos ao teu encontro, conforme pediste. Queremos ser tão dignos como tu de escolher o nosso futuro.
Eu não conseguia esconder a cara de surpresa que tinha. Nunca pensei que a minha mensagem tivesse tantos adeptos.
— Mas... quem são vocês?
— Jovens como tu, desenraizados, inadaptados, incompreendidos, e sobretudo, não amados. — responderam em uníssono.
Talvez por ver a minha cara de espanto, uma rapariga adiantou-se e disse-me:
— Chamo-me Ana ou Marta, ou ainda Madalena ou Carolina. Tenho vários nomes e ao mesmo tempo não sou ninguém. Não penses que és só tu que anseias pela liberdade e pelo amor. Fiquei sem pai e mãe desde muito cedo, aliás nem me lembro muito bem deles. Quem ficou a cuidar de mim foi uma tia, que passava o tempo a bater-me e a rogar pragas pelo facto de me ter a seu cargo. Vivi durante anos num estado de medo permanente, em constante sobressalto. Cresci assim, e fui desenvolvendo uma certeza: não iria aguentar para toda a vida este inferno. Um dia conheci um rapaz, que me prometeu este mundo e o outro, e me deslumbrou com os seus conhecimentos e o seu charme. Lembro-me com afecto dos encontros secretos debaixo do grande plátano que existia no centro da minha aldeia, testemunha dos primeiros beijos e das primeiras carícias. Nesse plátano ficaram gravados a canivete corações atravessados por setas jurando amor eterno. Um dia fugimos para a grande cidade. No horizonte, grandes sonhos de felicidade e de vida próspera. Os primeiros tempos foram vividos na rua. Como éramos jovens e apaixonados enfrentávamos a vida com um sorriso nos lábios. Ele trabalhava nas obras e eu ia para os parques dos hipermercados arrumar carrinhos. Começámos a ter alguns amigos, todos marginais da vida, como nós éramos, e ao fim de uns tempos, convidaram-nos a ir viver com eles, numa casa desabitada e completamente degradada. Apesar de ser mais parecida com uma lixeira do que propriamente com uma casa, foi o nosso primeiro tecto, onde partilhámos bons momentos e alguns menos bons. Mas o destino acabou por ser outro. O que ficou da relação foi uma gravidez inesperada. Perante esta responsabilidade, ele desapareceu e nunca mais o vi. Acabei por ser abandonada por ele e pelos seus amigos. Com um filho nos braços para criar como futuro próximo, senti na pele a solidão angustiante de quem nunca teve, não tem e nunca terá nada da vida a não ser ilusões e sonhos efémeros. Senti o desespero de não saber para onde ir nem a quem pedir ajuda. Voltar para a minha aldeia, junto da minha tia estava fora de questão. Ao deambular sem sentido pelas ruas da cidade tendo como solução no horizonte pôr fim à vida, encontrei uma antiga colega quando arrumava carrinhos nos hipermercados. Por seu intermédio acabei por ser acolhida numa casa de passe, passando a conviver com outras mulheres, que vendendo prazer e ilusões recebiam como pagamento o infortúnio da vida. Ali fazia os trabalhos da manutenção da casa, como a limpeza e a comida. E foram elas que me deram solução para a minha gravidez, que, na opinião delas, só me iria complicar a vida. A criança mal nasceu, tinha à sua espera um casal de estrangeiros, futuros pais adoptivos do meu filho, que eu nunca mais vi. Uma parte de mim, a mais importante, desapareceu. Foi e é a maior mágoa da minha vida, uma mágoa profunda e dilacerante, que nunca mais me abandonou, e que me fez sentir que a vida às vezes não devia valer, devia ser como um gravador de cassetes, deveria ter uma tecla para andar para trás a fita e gravar de novo. Passei a “trabalhar” como as outras raparigas. Mas eu, que vendia prazer, quem me dava prazer a mim, quem me acarinhava e ajudava a suportar esta dor, esta angústia? A vida deixou de ter sentido, definitivamente. Ouvi o teu apelo e estou aqui para ser solidária contigo e partilhar contigo a decisão que tomaste para esta noite e que é minha também.
Ia chegando cada vez mais gente anónima, em silêncio.
— Eu chamo-me Zé, um nome vulgar e sem importância. Ou melhor, eu é que não tenho importância. Sou filho de emigrantes, nasci naquilo que hoje se chama um bairro problemático. A minha mãe abandonou-me aos quatro anos, farta de levar porrada do meu pai. Fiquei aos cuidados dele, que estava sempre bêbado e sem emprego certo. Por isso muitas vezes não havia comida na mesa, apenas porrada atrás de porrada. Quando entrei na escola, aos seis anos, talvez pelo exemplo e pelo ambiente diário que tinha em casa, comecei a demonstrar toda a minha agressividade, batendo não só nos colegas, mas também na professora. Era a forma de me afirmar. É claro que isto não iria durar muito, não porque a escola conseguisse modificar-me, mas porque comecei a faltar com frequência. Convivia nessa altura com um grupo de vizinhos que tinham formado um gang cuja especialidade era assaltar tudo o que aparecesse à frente, e isto tudo me seduzia. Comecei a fumar e andar à boleia na vida da marginalidade e do crime. Ao principio eram só assaltos a carros. Fui preso várias vezes, mas como era menor, acabava por não ter grandes chatices. Mais tarde pratiquei assaltos à mão armada a bombas de gasolina e ourivesarias. Acabei por ser preso. Na prisão, em vez de me corrigir, aprofundei os meus conhecimentos, não só na arte do crime, como conhecimentos e influências que me ajudariam depois de sair da pildra. Cá fora, quem é que se interessa em dar um emprego a um ex-presidiário? A tentação é grande e com os conhecimentos adquiridos, dediquei-me ao tráfico de droga. Fui preso novamente. E tem sido sempre assim, mais tempo na prisão do que cá fora. Faz sentido? Desperdicei a minha vida, não vejo horizontes positivos no horizonte a não ser as grades da prisão. A vida assim não vale a pena, pelo que tendo conhecimento da tua proposta, resolvi adoptá-la para mim próprio. Cá estou, conta comigo.
— Poderá uma paixão de adolescente durar uma vida inteira? — questionou um homem que trazia uma camisola onde se podia ler “Homem Sem Nome”. — Eu queria acreditar que sim, mas hoje vejo que é uma utopia demente acreditar nisso. Foi sempre a minha paixão. Porém nunca nada estava bem. Hoje era isto, amanhã aquilo, no outro dia outra coisa qualquer. A minha luta diária era agradar para segurar aquele que era o amor da minha vida. Acabei por dar cabo de mim e dos que me rodeavam. Perdi tudo, a família, os amigos, a paz interior, a oportunidade de ser feliz. Hoje deixei um poema escrito:
Devo crer...
Que o amor é fogo
Que arde sem se ver?
Então...
Como ter um incêndio que dilate o meu ser?
Então...
Como fazer
Para pôr o meu peito a arder
Se com o teu olhar
Frio ao amanhecer
Me sinto lentamente
A desfazer...
— A poesia, sim a poesia... — murmurou a multidão baixinho.
Ouviu-se uma outra voz, dispersa, ao longe, declamando:
De repente
Fugi da “gente”
Como quem mente
Perdidamente
Para te desejar ardentemente
Um Natal diferente
Onde o espírito prepotente
E a calúnia indecente
Deixem de existir finalmente.
De repente
Olho desesperadamente
Para um “Carnaval” demente
De fachada inconsistente
E de pobreza imponente.
Desejar-te tristemente
Uma alegria impotente
Para tentares viver alegremente
Numa vida inconsequente
È a minha angústia, exactamente
Uma outra voz se ergueu:
O sofrimento
foi lançado à multidão
Com o pequeno gesto
De uma mão
Consumir desalmadamente
É a razão
Imaginar a felicidade
É a ilusão
O futuro da podridão
É o lucro até mais não
A droga transformou-os em solidão
Na violência perdeu-se um irmão
Ganhou-se o desespero
Da prostituição
Ficaram os náufragos da civilização
E a vida é uma desilusão
Uma total desilusão...
— Uma total desilusão... — repetiu Patinho Feio.
Cada vez chegavam mais pessoas, em silêncio.
Aos poucos foram dando as mãos, formando um cordão humano, silencioso. Olharam-se nos olhos, e então, num gesto colectivo, saltaram todos. Sem excepção.