Anão número cinco tomava descontraídamente o seu café matinal, numa esplanada situada no centro de uma pequena cidade do interior. Era um hábito dos domingos de manhã. Vestido com o seu fato de treino preferido (e único, diga-se), de sapatos castanhos e meia branca a condizer, aproveitava para pôr em dia os acontecimentos desportivos, lendo com certa dificuldade o jornal mais vendido no país, o Rebola a Bola.
Mais uma vez, a sua equipa preferida resolveu dar-lhe um desgosto. Paciência, já estava habituado.
A esta hora, os outros seis irmãos andariam agarrados à moto-enxada, preparando a sementeira das batatas e da couve-nabo. Domingo era o único dia disponível para estas actividades de lazer e sobrevivência. Os outros dias da semana eram passados, de sol a sol, dentro da mina de carvão, onde todos trabalhavam.
Resignados com aquilo que o Criador lhes destinou, lá arrancam todos os dias de manhã, com as sopas de cavalo cansado no buxo, na motoreta Zundap, até às instalações da empresa mineira, onde picam o cartão à entrada, enfiam o capacete pela cabeçorra abaixo, e “ala que se faz tarde” para o buraco do seu ganha pão.
A manhã aproximava-se do fim e o Anão número cinco também estava a chegar às últimas páginas do Rebola a Bola. De súbito, um anúncio prendeu-lhe a atenção:
Mulher de futebolista!
Meiga! Muito Carente!
Boazona! Comilona!
Curvas perigosas! Sem pressa!
Conhece o petisco! Três pratos!!!
Vem provar...
Anão número cinco sentiu-se baralhado. Há muito tempo que andava a sentir uns calores dentro de si, a pedir-lhe qualquer coisa de diferente do buraco da mina onde verga a mola todos os dias. A falta de convívio intimo andava a perturbá-lo, embora mantivesse no maior segredo este seu desejo, não fosse o diabo tecê-las e virar motivo de risota na mina, onde o espirito de macho latino a cheirar a cavalo imperava e sentimentos destes davam azo a ser achincalhado pela vida fora.
Afinal de contas, talvez estivesse neste anúncio a solução do problema. Não precisava de dar satisfações a ninguém, não era discriminado pelo seu tamanho, motivo mais que suficiente para nenhuma rapariga se interessar por ele, e pelo menos “mudava o óleo”, que era aquilo de que andava mais precisado.
Estava decidido a ter esta experiência, embora algumas dúvidas pairassem no seu espirito de anão desconfiado. Atitude aliás natural de quem não tem uma experiência de vida alargada. Estava sobretudo intrigado com a frase “Três pratos”.
— Eh pá — pensou — será pequeno almoço, almoço e jantar?
Achava, como se dizia na gíria da mina, “fruta a mais”.
Sempre fora ensinado de pequenino, que é como quem diz, desde novo, porque pequenino se manteve ele até aos tempos de hoje, a desconfiar de galinha gorda. Ainda para mais sempre ouviu dizer ao Ti Zé das Couves, seu vizinho de longa data, (curiosamente, nunca entrou nas histórias infantis), que bastavam dez minutos para despachar a velha. Portanto, com três pratos incluídos, devia ser o dia todo.
Entrou dentro do café, pagou a conta e solicitou o telefone. Precisava de fazer uma chamada urgente para a família que vivia na grande cidade, desculpou-se.
Marcou o assunto para domingo, mas de lá uma voz muito feminina informou-o que o domingo era dia de folga, tinha de ser outro dia da semana. Insistiu, tinha de ser ao domingo, os afazeres profissionais, que o obrigavam a constantes deslocações ao estrangeiro, não permitiam outro dia. Omitiu deliberadamente a sua profissão de mineiro. Já que era assim, disseram-lhe do outro lado da linha, e uma vez que se tratava de um “gentleman importante”, podia ser no próximo domingo, concerteza, embora tivesse de pagar uma sobretaxa de dez por cento. Compreendia naturalmente, tratava-se de uma situação excepcional. Aceitou e combinou o resto dos detalhes. Desligou, pagou, contornou uma pergunta maliciosa do dono do café, — com que então, família longe, não é verdade? — E saíu sem mais demoras, que já se fazia tarde para o almoço.
De repente, apercebeu-se que estava com uma larica dos diabos. Nunca a Zundap acelerou com tanta alegria como neste dia.
— Conheço aquela voz, ia jurar que já a tinha ouvido em qualquer lado — cogitava, enquanto o vento lhe refrescava o cérebro aturdido com a aventura matinal.
Durante a semana que se seguiu, Anão número cinco até andava zonzo a pensar naquilo que o esperava.
Como será? — interrogava-se. De tal forma se envolveu nestes pensamentos que se tornou irascível para os irmãos e colegas de trabalho. O que se passará com este indivíduo? — pensava toda a gente. Em casa ninguém lhe podia dizer nada, que ele explodia imediatamente. Mal chegava do trabalho, comia qualquer coisa rapidamente e enfiava-se logo no quarto. Ficava horas deitado em cima da cama a idealizar o seu próximo domingo. Será que ao almoço é bacalhau? — pensava. Detestava bacalhau. O melhor era levar escondido um naco de pão com chouriço. Não, depois ainda podiam chamar-lhe parolo, e ele fazia questão de ser tratado como um príncipe.
Sempre foi o seu sonho. Ser príncipe. Só que nunca lhe deram semelhante papel. Há tipos cheio de sorte na vida. Já nascem príncipes, sem precisar de lutar por nada, vem tudo ter com eles, enquanto que outros, como ele, nascem feios, trabalham que nem desalmados para não ter nada, e quanto a vir alguma coisa ter com eles, só se forem desgraças e problemas.
— Amanhã não estou cá — disse de mau modo aos irmãos.
Um ar de espanto inundou a cara dos irmãos, pouco habituados à saída de qualquer um.
— Estão surdos? Eu disse que amanhã não estou cá — vociferou novamente.
— Ouvimos muito bem que amanhã não estás cá — disseram ao mesmo tempo os irmãos. E acrescentaram — Boa viagem. — E viraram costas imediatamente em direcção à horta.
Anão número cinco ficou espantado. Estava à espera que os irmãos, ao quererem saber o motivo da ausência dele, ficassem a morrer de inveja. Em vez disso, puseram-se “a milhas” com a maior indiferença do mundo. Foi como se tivesse levado uma facada nas costas. Não se lembrou, porém, do seu comportamento durante a semana para com os irmãos, pelo que este anúncio da sua ausência funcionou como um alívio geral para o resto da família.
Logo pela manhã, tomou uma banhoca, coisa rara, escanhoou a cara, vestiu a fatiota de ir à missa ao domingo e calçou uns sapatos pretos de verniz, muito brilhantes, a fazerem o contraste com a bela meia branca, um costume já antigo dos domingos de manhã. A excepção neste era o fato de treino, que ia ficar no armário até uma próxima oportunidade.
Pegou na motoreta e com um ar de felicidade estampado no rosto, acelerou a fundo, direito à cidade.
A morada indicada no anúncio não era propriamente no centro da cidade, era nos arredores. Nunca tinha por lá andado, pelo que se enganou algumas vezes, até que finalmente deu com aquilo. E aquilo era um bairro constituído por prédios que há vinte anos estão à espera do reboco exterior, esgotos a escorrer pelas paredes porque os tubos foram arrancados por serem necessários noutro lado, os caminhos que ainda não descobriram a palavra alcatrão. Os moradores apinhados em cada apartamento não conversavam. Gritavam e a linguagem usada começava naquilo que todos nós sabemos, e ia por ai acima, como se tivessem decorado o dicionário completo da asneira pegada.
À entrada, uma placa sugestiva catalogava de uma forma prática o local : BIDONVILLE DO EDEN.
Encontrou o prédio, e entre garotos ranhosos, mal vestidos, com um aspecto de Lin-Chung O Justiceiro da Bordoada, e mulheres desdentadas, de cabelo desalinhado e um suor fedorento, lá conseguiu chegar ao apartamento. Ainda ouviu uns piropos, do género — faço mais barato — ou então — um anão por aqui, a coisa não me cheira — ou ainda — homem pequeno, material grande — mas fez sempre ouvidos moucos a tamanhas provocações.
Tocou a campainha delicadamente durante dois minutos.
Pareceu a alguém do prédio que estavam a tocar para fogo, pelo que saiu imediatamente do prédio com o fato macaco vestido, com umas letras nas costas a dizer “Bombeiros”, pegou na bicicleta e desatou a pedalar pela estrada fora, aos saltos, devido à irregularidade do piso.
— Mas quem será o chouriço que está a tocar a campainha desta maneira? — Disse uma voz vinda do lado de dentro do apartamento.
A porta abriu-se e um Ah! de espanto simultâneo percorreu o corredor do andar.
— Branca de Neve — exclamou Anão número cinco.
— Anãozinho — exclamou Branca de Neve.
— Mas, tu aqui, neste sítio, não estou a perceber...
— Eu também não, pensei que era o meu príncipe novamente.
— Então... espera lá, há aqui alguma coisa que não está a funcionar bem. Tu e o teu príncipe não viveram felizes para sempre?
— Ó Anãozinho, isso foi na história, e só nas histórias infantis é que as pessoas são felizes para sempre, não é? No fundo, esses finais são sempre aquilo que toda a gente deseja, mas que a vida não nos consegue dar. Se não formos suficientemente atentos connosco, se não aproveitarmos todos os bocadinhos, nem que pareçam insignificantes, que nos fazem sentir bem connosco próprios e com o mundo, seremos, na vida real, uns infelizes para sempre. Quanto ao príncipe, nunca mais o vi.
— Nunca mais o viste!?... — disse Anãozinho, de certa forma aliviado, pois sempre sentira imensos ciúmes do príncipe. È que ainda por cima, na história original, nunca lhes foi dado qualquer hipótese de conquistar o coração de Branca de Neve. Já estava pré-destinado para o príncipe.
Faz lembrar algumas famílias modernas que ainda têm esta mentalidade de história infantil original.
— Nunca mais o vi, embora ultimamente tenha muitas saudades dele. Quando me convidaram para esta história, pensei que era para estar com ele.
— Por acaso, na história original, embora tenhamos aparentemente todos ficado muito contentes com o final, eu não. Sempre pensei que irias ficar connosco para sempre...
— Para sempre? Que horror, Anãozinho. Viver na floresta? Desculpa lá, mas não está nos meus planos ser uma espécie de porca criadeira, a cuidar de garotos farruscados, estar de manhã á noite preocupada com a lida da casa, a criar patos e galinhas e a ir à missa ao domingo na motoreta. Eu não tenho perfil para ser aldeã. Isso é lá mais com Hansel e Gretel, que têm instintos campónios muito aperfeiçoados...
— Não sei o que é preferível, se é viver na aldeia, de uma forma campónia, ou aqui, nesta espelunca, a fazer este trabalho, enfim, pouco adequado às tuas intenções de rapariga séria...
— Espero sinceramente que o meu príncipe apareça a qualquer momento — continuou Branca de Neve, ignorando completamente aquilo que o Anãozinho disse — com um bom carro, bastante dinheiro e uma situação social de fazer inveja a toda a gente. Mas agora reparo, vens muito janota, até te esqueceste da picareta...
— Hoje a picareta é outra. Vem escondida... — disse com malícia Anãozinho.
Vendo que Branca de Neve mudou rapidamente de expressão, apressou-se a tentar evitar qualquer chatice com ela — Então, mas ainda não me disseste, o que fazes aqui, nesta espelunca? O que te aconteceu para vires parar a esta “vida”? — disse, mostrando um ar bastante interessado, não fosse Branca de Neve aborrecer-se de vez com ele.
— O sonho!
— O sonho?!...
— O sonho, igual a uma história de amor, dessas histórias originais, como a Bela Adormecida, ou mesmo a minha, Branca de Neve e os Sete Anões. Tal como eu, que ando à procura de um príncipe, muitas destas mulheres que estão nesta “vida” também procuram um príncipe, que as tire rapidamente desta espelunca. Vieram atrás do sonho. Quiseram uma vida melhor, que as tirasse da choldra da família despedaçada, onde o álcool e a violência doméstica eram o pão nosso de todos os dias. Outras foram enganadas, deixaram-se seduzir por uma conversa carinhosa que desconheciam. Pudera, carinho foi coisa que nunca tiveram. Acreditaram que tinham direito a ser felizes, só que não sabiam que só é feliz quem pode, quem tem na história o papel principal. Aos poucos e poucos, com o tempo passando, ficaram sozinhas, as conversas carinhosas foram um “Ai que lhe deu”, e assim foram-se acostumando, conformadas com o destino que lhes foi traçado. É assim, passamos a vida a sonhar com príncipes e depois acabamos nesta vida.
Anãozinho estava boquiaberto com tal sensibilidade. Sentiu-se mal consigo próprio por não ter reflectido bem sobre estas coisas. Nunca tinha pensado nas mulheres que a troco de venderem sonhos, adiam eternamente o seu próprio sonho.
— Então, Branca de Neve, eu também sonhei!... Pensei que me iria sentir feliz, mas esta felicidade é efémera. Desaparece rapidamente.
— Sim Anãozinho, é verdade. Quanto a nós, não vale a pena ter ilusões. Eu continuo à procura do meu príncipe encantado, e não vou desistir disso. Aliás, a minha personagem só combina com príncipes e coisas do género. Além, de que no contrato não figuram propriamente anões. Eu tenho direitos, e não consinto ser enganada. Para isso, já bastou a palerma da bruxa, que me deu uma maçã envenenada, e eu caí que nem uma patinha.
«Anãozinho».
— Branca de Neve, tens cá alguém em casa? Pareço ouvir uma voz.
— Não, não está mais ninguém, aliás que eu saiba, não entra mais ninguém nesta história além de nós.
«Anãozinho, sou eu, o narrador».
— Ah!, és tu narrador. Então diz lá.
«Acho que está na altura de regressares a tua casa e aguardares por um novo contrato que te permita entrar noutra história. Estou confuso com tudo isto, não tinha planeado uma história assim...»
— Francamente Narrador — disse Branca de Neve — não estavas à espera que eu me pusesse a aviar anõezinhos de manhã à noite, pois não?
«Não é nada disso. A história, não sei porquê alterou-se, e agora começo a ter dificuldades em acabá-la. Acho melhor ficarmos por aqui, e pensarmos um pouco em tudo isto. Preciso de tempo para trabalhar melhor este assunto. Vou terminar esta história de forma simples, e um dia mais tarde, se julgar necessário, altero-a. É isso que vai acontecer».
Anãozinho voltou cedo. Os irmãos não o esperavam, muito menos para almoçar. Calado, não disse nada, e os irmãos também nada disseram. Depois do almoço, vestiu a sua habitual fatiota domingueira, constituída pelo seu belo fato de treino, sapatos com meia branca, e dirigiu-se à praça central da cidade, ao café habitual. Ao entrar, estranhou o olhar dos presentes, que o miravam de alto a baixo. Por momentos tremeu, a pensar que tinham descoberto a sua aventura matinal. Depois lembrou-se que não era costume ir de tarde, e daí a assombração do pessoal. O dono do café ainda lhe dirigiu umas palavras, no meio da confusão em que o café se tornava nas tardes de domingo:
— Então Anãozinho, aqui a esta hora? De manhã houve gazeta?
— Não pude vir. Fui atrás do sonho, mas como todos os sonhos, este também só fazia sentido dentro da nossa cabeça.
O dono do café ficou de olhos esbugalhados a olhar para o Anãozinho. Ao tirar um café da máquina, ficou a pensar com os seus botões: será que o café tem alguma droga que avarie de vez em quando a cabeça do Anãozinho?
Mais uma vez, a sua equipa preferida resolveu dar-lhe um desgosto. Paciência, já estava habituado.
A esta hora, os outros seis irmãos andariam agarrados à moto-enxada, preparando a sementeira das batatas e da couve-nabo. Domingo era o único dia disponível para estas actividades de lazer e sobrevivência. Os outros dias da semana eram passados, de sol a sol, dentro da mina de carvão, onde todos trabalhavam.
Resignados com aquilo que o Criador lhes destinou, lá arrancam todos os dias de manhã, com as sopas de cavalo cansado no buxo, na motoreta Zundap, até às instalações da empresa mineira, onde picam o cartão à entrada, enfiam o capacete pela cabeçorra abaixo, e “ala que se faz tarde” para o buraco do seu ganha pão.
A manhã aproximava-se do fim e o Anão número cinco também estava a chegar às últimas páginas do Rebola a Bola. De súbito, um anúncio prendeu-lhe a atenção:
Mulher de futebolista!
Meiga! Muito Carente!
Boazona! Comilona!
Curvas perigosas! Sem pressa!
Conhece o petisco! Três pratos!!!
Vem provar...
Anão número cinco sentiu-se baralhado. Há muito tempo que andava a sentir uns calores dentro de si, a pedir-lhe qualquer coisa de diferente do buraco da mina onde verga a mola todos os dias. A falta de convívio intimo andava a perturbá-lo, embora mantivesse no maior segredo este seu desejo, não fosse o diabo tecê-las e virar motivo de risota na mina, onde o espirito de macho latino a cheirar a cavalo imperava e sentimentos destes davam azo a ser achincalhado pela vida fora.
Afinal de contas, talvez estivesse neste anúncio a solução do problema. Não precisava de dar satisfações a ninguém, não era discriminado pelo seu tamanho, motivo mais que suficiente para nenhuma rapariga se interessar por ele, e pelo menos “mudava o óleo”, que era aquilo de que andava mais precisado.
Estava decidido a ter esta experiência, embora algumas dúvidas pairassem no seu espirito de anão desconfiado. Atitude aliás natural de quem não tem uma experiência de vida alargada. Estava sobretudo intrigado com a frase “Três pratos”.
— Eh pá — pensou — será pequeno almoço, almoço e jantar?
Achava, como se dizia na gíria da mina, “fruta a mais”.
Sempre fora ensinado de pequenino, que é como quem diz, desde novo, porque pequenino se manteve ele até aos tempos de hoje, a desconfiar de galinha gorda. Ainda para mais sempre ouviu dizer ao Ti Zé das Couves, seu vizinho de longa data, (curiosamente, nunca entrou nas histórias infantis), que bastavam dez minutos para despachar a velha. Portanto, com três pratos incluídos, devia ser o dia todo.
Entrou dentro do café, pagou a conta e solicitou o telefone. Precisava de fazer uma chamada urgente para a família que vivia na grande cidade, desculpou-se.
Marcou o assunto para domingo, mas de lá uma voz muito feminina informou-o que o domingo era dia de folga, tinha de ser outro dia da semana. Insistiu, tinha de ser ao domingo, os afazeres profissionais, que o obrigavam a constantes deslocações ao estrangeiro, não permitiam outro dia. Omitiu deliberadamente a sua profissão de mineiro. Já que era assim, disseram-lhe do outro lado da linha, e uma vez que se tratava de um “gentleman importante”, podia ser no próximo domingo, concerteza, embora tivesse de pagar uma sobretaxa de dez por cento. Compreendia naturalmente, tratava-se de uma situação excepcional. Aceitou e combinou o resto dos detalhes. Desligou, pagou, contornou uma pergunta maliciosa do dono do café, — com que então, família longe, não é verdade? — E saíu sem mais demoras, que já se fazia tarde para o almoço.
De repente, apercebeu-se que estava com uma larica dos diabos. Nunca a Zundap acelerou com tanta alegria como neste dia.
— Conheço aquela voz, ia jurar que já a tinha ouvido em qualquer lado — cogitava, enquanto o vento lhe refrescava o cérebro aturdido com a aventura matinal.
Durante a semana que se seguiu, Anão número cinco até andava zonzo a pensar naquilo que o esperava.
Como será? — interrogava-se. De tal forma se envolveu nestes pensamentos que se tornou irascível para os irmãos e colegas de trabalho. O que se passará com este indivíduo? — pensava toda a gente. Em casa ninguém lhe podia dizer nada, que ele explodia imediatamente. Mal chegava do trabalho, comia qualquer coisa rapidamente e enfiava-se logo no quarto. Ficava horas deitado em cima da cama a idealizar o seu próximo domingo. Será que ao almoço é bacalhau? — pensava. Detestava bacalhau. O melhor era levar escondido um naco de pão com chouriço. Não, depois ainda podiam chamar-lhe parolo, e ele fazia questão de ser tratado como um príncipe.
Sempre foi o seu sonho. Ser príncipe. Só que nunca lhe deram semelhante papel. Há tipos cheio de sorte na vida. Já nascem príncipes, sem precisar de lutar por nada, vem tudo ter com eles, enquanto que outros, como ele, nascem feios, trabalham que nem desalmados para não ter nada, e quanto a vir alguma coisa ter com eles, só se forem desgraças e problemas.
— Amanhã não estou cá — disse de mau modo aos irmãos.
Um ar de espanto inundou a cara dos irmãos, pouco habituados à saída de qualquer um.
— Estão surdos? Eu disse que amanhã não estou cá — vociferou novamente.
— Ouvimos muito bem que amanhã não estás cá — disseram ao mesmo tempo os irmãos. E acrescentaram — Boa viagem. — E viraram costas imediatamente em direcção à horta.
Anão número cinco ficou espantado. Estava à espera que os irmãos, ao quererem saber o motivo da ausência dele, ficassem a morrer de inveja. Em vez disso, puseram-se “a milhas” com a maior indiferença do mundo. Foi como se tivesse levado uma facada nas costas. Não se lembrou, porém, do seu comportamento durante a semana para com os irmãos, pelo que este anúncio da sua ausência funcionou como um alívio geral para o resto da família.
Logo pela manhã, tomou uma banhoca, coisa rara, escanhoou a cara, vestiu a fatiota de ir à missa ao domingo e calçou uns sapatos pretos de verniz, muito brilhantes, a fazerem o contraste com a bela meia branca, um costume já antigo dos domingos de manhã. A excepção neste era o fato de treino, que ia ficar no armário até uma próxima oportunidade.
Pegou na motoreta e com um ar de felicidade estampado no rosto, acelerou a fundo, direito à cidade.
A morada indicada no anúncio não era propriamente no centro da cidade, era nos arredores. Nunca tinha por lá andado, pelo que se enganou algumas vezes, até que finalmente deu com aquilo. E aquilo era um bairro constituído por prédios que há vinte anos estão à espera do reboco exterior, esgotos a escorrer pelas paredes porque os tubos foram arrancados por serem necessários noutro lado, os caminhos que ainda não descobriram a palavra alcatrão. Os moradores apinhados em cada apartamento não conversavam. Gritavam e a linguagem usada começava naquilo que todos nós sabemos, e ia por ai acima, como se tivessem decorado o dicionário completo da asneira pegada.
À entrada, uma placa sugestiva catalogava de uma forma prática o local : BIDONVILLE DO EDEN.
Encontrou o prédio, e entre garotos ranhosos, mal vestidos, com um aspecto de Lin-Chung O Justiceiro da Bordoada, e mulheres desdentadas, de cabelo desalinhado e um suor fedorento, lá conseguiu chegar ao apartamento. Ainda ouviu uns piropos, do género — faço mais barato — ou então — um anão por aqui, a coisa não me cheira — ou ainda — homem pequeno, material grande — mas fez sempre ouvidos moucos a tamanhas provocações.
Tocou a campainha delicadamente durante dois minutos.
Pareceu a alguém do prédio que estavam a tocar para fogo, pelo que saiu imediatamente do prédio com o fato macaco vestido, com umas letras nas costas a dizer “Bombeiros”, pegou na bicicleta e desatou a pedalar pela estrada fora, aos saltos, devido à irregularidade do piso.
— Mas quem será o chouriço que está a tocar a campainha desta maneira? — Disse uma voz vinda do lado de dentro do apartamento.
A porta abriu-se e um Ah! de espanto simultâneo percorreu o corredor do andar.
— Branca de Neve — exclamou Anão número cinco.
— Anãozinho — exclamou Branca de Neve.
— Mas, tu aqui, neste sítio, não estou a perceber...
— Eu também não, pensei que era o meu príncipe novamente.
— Então... espera lá, há aqui alguma coisa que não está a funcionar bem. Tu e o teu príncipe não viveram felizes para sempre?
— Ó Anãozinho, isso foi na história, e só nas histórias infantis é que as pessoas são felizes para sempre, não é? No fundo, esses finais são sempre aquilo que toda a gente deseja, mas que a vida não nos consegue dar. Se não formos suficientemente atentos connosco, se não aproveitarmos todos os bocadinhos, nem que pareçam insignificantes, que nos fazem sentir bem connosco próprios e com o mundo, seremos, na vida real, uns infelizes para sempre. Quanto ao príncipe, nunca mais o vi.
— Nunca mais o viste!?... — disse Anãozinho, de certa forma aliviado, pois sempre sentira imensos ciúmes do príncipe. È que ainda por cima, na história original, nunca lhes foi dado qualquer hipótese de conquistar o coração de Branca de Neve. Já estava pré-destinado para o príncipe.
Faz lembrar algumas famílias modernas que ainda têm esta mentalidade de história infantil original.
— Nunca mais o vi, embora ultimamente tenha muitas saudades dele. Quando me convidaram para esta história, pensei que era para estar com ele.
— Por acaso, na história original, embora tenhamos aparentemente todos ficado muito contentes com o final, eu não. Sempre pensei que irias ficar connosco para sempre...
— Para sempre? Que horror, Anãozinho. Viver na floresta? Desculpa lá, mas não está nos meus planos ser uma espécie de porca criadeira, a cuidar de garotos farruscados, estar de manhã á noite preocupada com a lida da casa, a criar patos e galinhas e a ir à missa ao domingo na motoreta. Eu não tenho perfil para ser aldeã. Isso é lá mais com Hansel e Gretel, que têm instintos campónios muito aperfeiçoados...
— Não sei o que é preferível, se é viver na aldeia, de uma forma campónia, ou aqui, nesta espelunca, a fazer este trabalho, enfim, pouco adequado às tuas intenções de rapariga séria...
— Espero sinceramente que o meu príncipe apareça a qualquer momento — continuou Branca de Neve, ignorando completamente aquilo que o Anãozinho disse — com um bom carro, bastante dinheiro e uma situação social de fazer inveja a toda a gente. Mas agora reparo, vens muito janota, até te esqueceste da picareta...
— Hoje a picareta é outra. Vem escondida... — disse com malícia Anãozinho.
Vendo que Branca de Neve mudou rapidamente de expressão, apressou-se a tentar evitar qualquer chatice com ela — Então, mas ainda não me disseste, o que fazes aqui, nesta espelunca? O que te aconteceu para vires parar a esta “vida”? — disse, mostrando um ar bastante interessado, não fosse Branca de Neve aborrecer-se de vez com ele.
— O sonho!
— O sonho?!...
— O sonho, igual a uma história de amor, dessas histórias originais, como a Bela Adormecida, ou mesmo a minha, Branca de Neve e os Sete Anões. Tal como eu, que ando à procura de um príncipe, muitas destas mulheres que estão nesta “vida” também procuram um príncipe, que as tire rapidamente desta espelunca. Vieram atrás do sonho. Quiseram uma vida melhor, que as tirasse da choldra da família despedaçada, onde o álcool e a violência doméstica eram o pão nosso de todos os dias. Outras foram enganadas, deixaram-se seduzir por uma conversa carinhosa que desconheciam. Pudera, carinho foi coisa que nunca tiveram. Acreditaram que tinham direito a ser felizes, só que não sabiam que só é feliz quem pode, quem tem na história o papel principal. Aos poucos e poucos, com o tempo passando, ficaram sozinhas, as conversas carinhosas foram um “Ai que lhe deu”, e assim foram-se acostumando, conformadas com o destino que lhes foi traçado. É assim, passamos a vida a sonhar com príncipes e depois acabamos nesta vida.
Anãozinho estava boquiaberto com tal sensibilidade. Sentiu-se mal consigo próprio por não ter reflectido bem sobre estas coisas. Nunca tinha pensado nas mulheres que a troco de venderem sonhos, adiam eternamente o seu próprio sonho.
— Então, Branca de Neve, eu também sonhei!... Pensei que me iria sentir feliz, mas esta felicidade é efémera. Desaparece rapidamente.
— Sim Anãozinho, é verdade. Quanto a nós, não vale a pena ter ilusões. Eu continuo à procura do meu príncipe encantado, e não vou desistir disso. Aliás, a minha personagem só combina com príncipes e coisas do género. Além, de que no contrato não figuram propriamente anões. Eu tenho direitos, e não consinto ser enganada. Para isso, já bastou a palerma da bruxa, que me deu uma maçã envenenada, e eu caí que nem uma patinha.
«Anãozinho».
— Branca de Neve, tens cá alguém em casa? Pareço ouvir uma voz.
— Não, não está mais ninguém, aliás que eu saiba, não entra mais ninguém nesta história além de nós.
«Anãozinho, sou eu, o narrador».
— Ah!, és tu narrador. Então diz lá.
«Acho que está na altura de regressares a tua casa e aguardares por um novo contrato que te permita entrar noutra história. Estou confuso com tudo isto, não tinha planeado uma história assim...»
— Francamente Narrador — disse Branca de Neve — não estavas à espera que eu me pusesse a aviar anõezinhos de manhã à noite, pois não?
«Não é nada disso. A história, não sei porquê alterou-se, e agora começo a ter dificuldades em acabá-la. Acho melhor ficarmos por aqui, e pensarmos um pouco em tudo isto. Preciso de tempo para trabalhar melhor este assunto. Vou terminar esta história de forma simples, e um dia mais tarde, se julgar necessário, altero-a. É isso que vai acontecer».
Anãozinho voltou cedo. Os irmãos não o esperavam, muito menos para almoçar. Calado, não disse nada, e os irmãos também nada disseram. Depois do almoço, vestiu a sua habitual fatiota domingueira, constituída pelo seu belo fato de treino, sapatos com meia branca, e dirigiu-se à praça central da cidade, ao café habitual. Ao entrar, estranhou o olhar dos presentes, que o miravam de alto a baixo. Por momentos tremeu, a pensar que tinham descoberto a sua aventura matinal. Depois lembrou-se que não era costume ir de tarde, e daí a assombração do pessoal. O dono do café ainda lhe dirigiu umas palavras, no meio da confusão em que o café se tornava nas tardes de domingo:
— Então Anãozinho, aqui a esta hora? De manhã houve gazeta?
— Não pude vir. Fui atrás do sonho, mas como todos os sonhos, este também só fazia sentido dentro da nossa cabeça.
O dono do café ficou de olhos esbugalhados a olhar para o Anãozinho. Ao tirar um café da máquina, ficou a pensar com os seus botões: será que o café tem alguma droga que avarie de vez em quando a cabeça do Anãozinho?
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