quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lobo Mau nos tempos modernos

Lobo Mau deambulava pelos subúrbios da cidade. Fortemente industrializada, o seu tom cinzento transmitia a todos os seus habitantes um aspecto deprimente. Uma espessa neblina de fumo e um cheiro nauseabundo ornamentavam o já triste e decadente ambiente. Lobo Mau dirigia-se para a estação de metro, cumprindo assim um ritual diário. Passava pelo rio, de cor escura, com elementos cilíndricos de cor acastanhada boiando livremente, ouvia os aviões com o seu barulho ensurdecedor a caminho do aeroporto e ao longe ouvia o silvo de um comboio de transporte de mercadorias. Nada de novo. Mais um dia de trabalho na fábrica de parafusos e porcas ( de metal, bem entendido.); mais um dia a fazer a mesma coisa; mais um dia de viagem de casa para a fábrica e da fábrica para casa. O mesmo rame-rame do costume.
— Que raio de vida! — suspirou Lobo Mau, olhando distraídamente para o anúncio de uma conhecida marca de detergentes que dizia que conseguia lavar mais branco que o próprio branco.
— Pode lá ser. — Reflectiu Lobo Mau.
A paradisíaca floresta, onde antigamente vivia Lobo Mau, era de uma beleza rara, cheia de árvores frondosas, caminhos poeirentos e casinhotas de palha, madeira e tijolo, sendo costume nesta última o Lobo Mau queimar o traseiro na lareira, subir em formato de foguetão pela chaminé e apagar as nádegas incendiadas em solavancos mais ou menos certos no caminho poeirento. Nestas casinhotas viviam os restantes elementos da história original, mais conhecidos pelos três porquinhos.
Esta floresta foi transformada em zona industrial de matérias químicas, com aterro sanitário incluído que por acaso nunca funcionou, o que parece normal em situações do género. Para completar melhor o quadro, foram lá colocadas duas cimenteiras a co-incinerar resíduos tóxicos, sem as respectivas mangas de protecção, o que também começa a ser normal.
No dia da sua inauguração, Lobo Mau estranhamente ficou feliz. Pelo menos tinha-se livrado dos lenhadores, que muitas dores de cabeça lhe tinham dado, sobretudo na história do Capuchinho Vermelho.
Porém, rapidamente chegou à conclusão de que mais valia levar chumbo dos lenhadores e ter vida saudável, do que viver nesta miséria decadente, onde se tem de cumprir horários, trabalhar para morrer reformado, baixos salários, as crianças ao abandono afectivo e as famílias a conhecerem-se vagamente á noite.
Efectivamente, o principezinho de Saint-Exupéry tem razão quando diz que a perfeição não existe. Ou seria a raposa, que ficou alegre quando soube que não havia caçadores no planeta do principezinho, e ao mesmo tempo triste quando também soube que não havia galinhas?
— Brrr!..., que trampa de vida. — pensou Lobo Mau. — Que saudades que eu já tenho da minha alegre floresta, tão bonita e tão limpinha.
De repente veio-lhe à memória os seus amigos porquinhos. Como que a fazer lembrar os tempos antigos, começou rapidamente a babar-se.
— Que bela chicha. – Suspirou Lobo Mau.
Resolveu mudar de percurso e meter-se por uma rua estreita, ladeada por suiniculturas feitas de acordo com as melhores técnicas de produção animal. Procurou o número 7057, onde viviam os seus amigos porquinhos, de cujos nomes ainda se recordava muito bem. Eram o Basófilo, o Triglícerideo e o Colesterol. Bateu à porta. Nada. Um silêncio como resposta. Bateu novamente. Sentiu passos. A porta abriu-se. A cara de espanto de Basófilo surpreendeu Lobo Mau. Antigamente era de terror. Como os tempos mudam.
— Lobo Mau?!...
— Sim, sou eu. Tenho saudades vossas e resolvi visitar-vos.
— Bom, como esta não é a história original podes passar para dentro. Mais a mais, já estamos todos mais civilizados.
Lobo Mau entrou e encontrou os manos porquinhos a fazer o jantar. Sentou-se e calmamente começou a falar.
— Sabem, de repente deu-me umas saudades do antigamente, em que corria desalmadamente atrás de vocês, embora o sacana do narrador nunca me deixasse apanhar-vos. Apesar de tudo, foram os melhores tempos da minha vida, de maneira que vinha pedir autorização para vos comer e tentar relembrar os velhos tempos. Que acham?
Os porquinhos ficaram muito sérios, a olhar para o Lobo Mau.
— Este gajo está doido, esqueceu-se da deixa. Será que não leu o guião? – Questionaram-se interiormente os três porquinhos.
Basófilo, mais corajoso, depois de olhar demoradamente o Lobo Mau, e decidido a cumprir o plano da história, foi o primeiro a reagir:
— Lobo Mau, que olhos tão grandes e amarelos tu tens. Isso é figadeira. Tens uma esteatose hepática. A carne de porco vai fazer-te muito mal.
Triglícerideo olhou também para Lobo Mau e acrescentou:
— Lobo Mau, que dentes tão grandes, podres e cheios de cárie. Isso é do açúcar e do tabaco. Tens de alimentar-te de uma forma saudável. A carne de porco vai fazer-te muito mal.
Colesterol, assim que o irmão acabou de falar, sem perder tempo, disse-lhe:
— Lobo Mau, mas que mãos tão grandes e tão atrofiadas. Que articulações tão inchadas. Isso é do ácido úrico , e se comeres carne de porco, vais ficar muito pior, com muitas dores e sem conseguires andar.
— Tens de FAZER UMA DIETA, Lobo Mau. – Gritaram ao mesmo tempo os três porquinhos.— Janta connosco. Como sabes, somos vegetarianos e a nossa comidinha vai fazer-te muito bem.
E rapidamente puseram-lhe à frente uma tigela de sopa, que era feita de cebola, aipo, pimentos e tomates, tudo triturado e sem sal.
— Mas isto é lavagem.- Disse angustiado Lobo Mau.
— Outra vez? – Pensou Basófilo.
— Então este gajo não sabe o que comem os porcos? — Reflectiu Triglícerideo.
Não querem lá ver que o narrador não lhe deu o guião certo? – Ponderou Colesterol.
Lobo Mau estava alucinado. A réstia de esperança desvaneceu-se completamente. A possibilidade de voltar à felicidade da história original estava por terra. Nisto, tocou o telemóvel. Lobo Mau atendeu e começou logo a abanar a cabeça e a dizer “Sim, já vou querida”, repetidas vezes. Era a sua mulher, Loba Boazona, a reclamar pelo facto de ele se encontrar atrasado. Afinal, havia tanta coisa por fazer; ajudar os lobitos nos trabalhos da escola; ajudar a fazer o jantar; lavar a louça; limpá-la; arrumar a cozinha...
O desespero aumentou mais em Lobo Mau. Mais uma vez não tinha conseguido atingir o seu objectivo, tal como na história original. Coitado do Lobo Mau.
— Narrador, Narrador, estás a ouvir-me?
«Como? Mas, quem me está a interromper? Estou a ouvir o meu nome...»
— Narrador, Narrador, estás a ouvir-me?
«Mas que é que me chama?»
— Sou eu, o Lobo Mau.
«Lobo Mau? Mas não é suposto tu falares comigo.»
— Eu sei, mas acontece que estou farto desta história...
«Ouve lá, mas quem decide a história sou eu, não és tu. Tu tens de fazer aquilo que eu determino, senão posso substituir-te no elenco, e olha que personagens não faltam: o Capuchinho Vermelho, o Gato das Botas, a Branca de Neve, os Sete Anões, sei lá mais o quê...»
— Eu sei, e sabes bem que preciso deste cachet, mas não consigo adaptar-me a este ambiente tétrico. Esta história da dieta não estava nos meus planos. Isto é ridículo para um Lobo...
«Ouve lá, Lobo Mau, quem é que te disse que esta história da dieta não estava nos planos? Desde quando é que fazer uma história nos tempos de hoje não implica falar de dieta? Há alguém hoje que não precise de uma dieta? E as criancinhas, cujos papás e mamãs vão ler esta história, não estão todas obesas de comerem desenfreadamente pizzas e hambúrgueres, devidamente acompanhadas com aquela pestilenta bebida chamada Coca-Cola? Portanto, se queres fazer parte da história, tens de fazer o que eu escrevo.»
— Demora muito ou faz serão? – gritaram a uma só voz Basófilo, Triglícerideo e Colesterol.— Ainda hoje temos de participar noutro conto e não há tempo a perder com carreiras artísticas frustradas como a do Lobo Mau.
«Pouco barulho, faz favor, que assim ninguém se entende. Aqui quem escreve sou eu e portanto como eu redigir é como fica.»
— Narrador, sou eu outra vez...
«Lobo mau, começo a não ter paciência para ti...»
— Por favor, devolve-me à história original. É melhor para mim...
«Olha, realmente é melhor, começo a estar farto das tuas pieguices. Portanto este conto já só tem uma solução. Sabes qual é?»
— Não...
«FIM.»

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