terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O Conclave

A esta hora o aeroporto vive apinhado de multidões eufóricas. Gente de todo o lado, de todos os credos, de todas as raças, percorrem desenfreadamente todo o espaço disponível. Têm apenas uma pequena coisa em comum: estão todos ligeiramente atrasados para apanhar os respectivos voos. Mas isso acaba por ser perfeitamente normal neste enorme aeroporto, plantado na periferia da grande cidade.
Também é normal, nos tempos que correm, o facto de o aeroporto ser a casa de habitação de centenas de pessoas, (escrevi bem, pessoas), marginalizadas pelos infortúnios da vida ou muitas vezes vítimas do seu próprio percurso. O aeroporto acaba por ser uma espécie de sandes mista, onde se encontra um pouco de todos e um pouco de tudo.
Apesar deste caótico cenário de deslocação de multidões, existem sempre dois tipos de personalidades que se distinguem perfeitamente no meio da amálgama de corpos circulantes. Nunca saberemos, ao olhar para toda a gente, distinguir onde estão médicos, engenheiros civis, motoristas, padeiros, professoras, etc. Mas rapidamente distinguimos dois tipos de pessoas no meio da multidão. Os polícias e os padres.
O Cardeal Nascimento, de origem brasileira, aguardava calmamente no sítio previamente combinado. Distinguia-se perfeitamente no meio da multidão pelas suas vestes características e pelo ar sereno e tranquilo que transparecia no seu rosto, em contraste evidente com o rosto de toda a gente.
Tinha feito uma viagem tranquila desde S. Paulo, no Brasil, até Lisboa. Durante o tempo de voo, foi rezando baixinho, pedindo a protecção de Deus para o grande desafio que tinha pela frente nos próximos dias. Era a primeira vez que estava “metido” numa situação destas, pelo que as dúvidas e receios que se tinham abatido sobre si próprio eram de tal forma avassaladoras, que só com um forte silêncio interior, conseguido apenas com a prática da oração, lhe permitia enfrentar serenamente a situação.
Mais três figuras clericais se aproximaram do sítio onde estava o Cardeal Nascimento, em simultâneo, e com o mesmo passo calmo e descontraído que contrastava com a agitação do aeroporto. Um deles era de raça negra. Chama-se Bowen, tinha pouco mais de setenta anos, e era um dos cardeais mais estimado em todo o continente africano, pela luta constante em prol dos direitos humanos e ter desenvolvido uma luta pacífica pelos direitos dos povos à sua autodeterminação. Hoje a sua principal preocupação é o endividamento do chamado terceiro mundo ao mundo dito civilizado, bem como alertar para o facto de o terceiro mundo ser uma espécie de caixote do lixo das grandes potências mundiais. Tal como o Cardeal Nascimento, era a primeira vez que o Cardeal Bowen iria participar no grande evento que iria decorrer no Vaticano nos próximos dias. Os outros dois eram, respectivamente, americano e português.
Proveniente de Boston, o Cardeal Reilly era o mais novo de todos. Tinha um ar jovial e forte sentido de humor. Praticar o cristianismo num país como a América, era um desafio gigantesco, mas Reilly, pessoa de fortes convicções, conseguiu consolidar uma Igreja, que já era marcante na sociedade americana. Reilly não é profundamente admirador das linhas dogmáticas provenientes da Santa Sé. Mantinha-se na linha dos chamados renovadores, seguidor portanto daqueles que defendem alterações profundas na orientação do Vaticano, nomeadamente defendendo a plena integração da mulher nas actividades da comunidade, nomeadamente o acesso ao sacerdócio, a possibilidade de os padres poderem contrair matrimónio e uma reviravolta no que toca à visão do Vaticano relativamente à sexualidade. Basta isto para percebermos que se trata de um cardeal “persona non grata”, ou pelo menos visto com alguma reserva por parte das hostes eclesiais. Considerado um subversivo ao dogma reinante por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, foi alvo de várias tentativas de silenciamento, valendo-lhe o facto de a Igreja americana ser a pricipal financiadora da Santa Sé, e como os cofres do Vaticano não andavam de grande saúde, os “inquisidores” tiveram de ser tolerantes com o Cardeal Reilly.
O último cardeal é português. Viriato da Fonseca de seu nome, tem como principais características ser calmo e sereno. Intelectualmente é muito forte, (considerado até um dos mais brilhantes cardeais da actualidade), e tem tido um papel preponderante no diálogo entre as igrejas periféricas da Europa (América Latina, África e América do Norte) e a Santa Sé, que se tem mantido pregada aos seus dogmas e fiel a uma grande incapacidade de diálogo. Há quem o aponte como um dos grandes candidatos a sucessor do Grande Papa, recentemente falecido, exactamente por esta capacidade de intermediação, cada vez mais necessária. Atento ao mundo que o rodeia, vai largando, aqui e acolá, algumas dicas a favor de alguns temas mais controversos, mas sem se comprometer muito, ganhando assim simpatia entre gregos e troianos.
Foi este cardeal português a ter a ideia de marcar este encontro, antes do grande conclave, que se irá realizar dentro de dias. E o motivo é muito simples: discutirem abertamente entre eles, representantes de sensibilidades tão distintas e tão próprias no seio da Igreja Católica, todos os temas e situações que entendam pertinentes, e que os ajude a uma melhor reflexão, para que a escolha do sucessor de Pedro seja feita mais de acordo com os interesses da Igreja global e menos de acordo com os interesses de grupos e organizações internas.
Cumprimentaram-se cordialmente. Após a normal troca de queixumes simpáticos sobre as longas viagens feitas até Lisboa, dirigiram-se até à zona de embarque, pois eram já aguardados pela tripulação do jacto particular que os levaria a Roma. Seria na viagem, resguardados de outro tipo de passageiros, que dariam inicio à discussão combinada.
— Todos nós estamos empenhados em dar um contributo válido, transformador, na nossa Igreja. — começou por falar o Cardeal português — É essa a razão de nos encontrarmos juntos, neste momento. Todos temos consciência da forma avassaladora com que o mundo nos confronta diariamente com novos desafios aos valores do cristianismo. E por vezes sentimos que a nossa Igreja, (e não estou só a falar do clero, estou a referir-me também ao desempenho de todos os cristãos em geral), nem sempre responde de forma a ser bem interpretada. Gostaria, em primeiro lugar, de partilhar convosco uma pequena história que ilustra bem, na minha opinião, o problema da secularização, que é de facto, um dos maiores entraves a uma militância que se coloque mais perto dos desafios do mundo contemporâneo. Esta história ouvia-a em Coimbra, uma bela cidade portuguesa, em 1986, nos encontros Fé e Cultura, e nunca mais a esqueci.
“Há muitos anos, centenas decerto, certo guru, antigo, na Índia, sempre que reunia os seus iniciados para a oração da tarde, aparecia um gato, que passeando entre os orantes, perturbava a função. Um dia decidiu-se, logo que tocasse o sino da reunião, passar a prender o gato durante o tempo da oração, soltando-o a seguir. Passou o tempo, o guru morreu, morreu o gato, o tempo foi-se passando, novas gerações de gurus vieram, bem como novas gerações de iniciados e outros gatos, e se lá formos hoje, reparamos que quando toca o sino da reunião, toda a gente prende o seu gato. Com uma pequena diferença: é que hoje ninguém sabe porque se prende o gato.”
É bom que no presente e no futuro, se saiba porque fazemos certas coisas, para que não se perca a identidade. Todos nós temos as nossas comunidades, onde uma grande maioria dos crentes se limita a cumprir toda a tradição recebida sem saber o porquê, a razão da existência da referida tradição. E haverá naturalmente casos em que determinadas acções poderão ter feito sentido numa época e que hoje nem se justificam, pelo menos na forma como são praticadas. E depois ainda aparecem definições ainda mais mirabolantes, como por exemplo, ser católico não praticante, o que é um absurdo. Se somos católicos, temos de ser forçosamente praticantes. Isto é como ser nudista não praticante, desculpem a expressão. Ou se é ou não se é. Penso que um dos principais desafios da nossa Igreja é interiorizar este fenómeno e transformá-lo de forma a que os valores cristãos não tenham sentido ou fiquem desfigurados por práticas de culto pouco apelativas e desprovidas de sentimento.
— Estou em total concordância consigo — falou o Cardeal brasileiro — e julgo que aí reside uma das razões do afastamento, ou pelo menos, do menor interesse da juventude pela nossa Igreja. Muitas vezes assisto a criticas exacerbadas à juventude, porque o seu comportamento está longe daquilo que gostaríamos que fosse, porque a sua irreverência nos incomoda, porque demonstram uma quase total ausência de valores. No entanto, uma eucaristia com a participação activa de jovens adquire uma energia, uma vitalidade, uma dinâmica, uma força tão grande, que é um grande erro desbaratar este potencial. Quando falamos em juventude, temos de pensar que os grandes responsáveis pela atitude dos jovens perante a vida somos nós, porque somos nós, gerações mais velhas, que os educamos, formamos, lhes transmitimos valores, Eles são fruto da nossa realidade. Eu costumo, em encontros cristãos sobre a juventude, colocar à análise dos formandos, quatro frases que são sintomáticas daquilo que acabo de dizer, e vou também partilhá-las convosco:
1 - “A nossa juventude ama o luxo, é mal educada, zomba da autoridade e não tem nenhuma espécie de respeito pelos velhos. As crianças de hoje são tiranas. Não se levantam quando um velho entra numa sala, respondem a seus pais e são simplesmente más.”
2 - “Não tenho nenhuma esperança no futuro do nosso país, se a juventude de hoje toma o mando amanhã, porque esta juventude é insuportável, sem moderação, simplesmente terrível.”
3 - “O nosso mundo atingiu um estado crítico. Os filhos não escutam os pais. O fim do mundo não pode estar longe.”
4 - “Esta juventude está podre desde o fundo do coração. Os jovens são maus e preguiçosos. Não serão nunca a juventude de outrora. Os de hoje não são capazes de manter a nossa cultura.”
Naturalmente, custa-vos a estar de acordo com estas frases, mas concerteza já ouviram coisas muito semelhantes, e continuarão a ouvir. Apenas por curiosidade digo-vos que a primeira frase é de Sócrates, que viveu como sabem cerca de 470 A.C., a segunda frase é de Hesíodo que viveu 720 A.C., a terceira frase é de um sacerdote egípcio, cerca de 2000 A.C. e a quarta frase foi descoberta numas ruínas da Babilónia com cerca de 3000 anos. Apetece dizer: a juventude de hoje...
Como vêem, o fenómeno da juventude não é um desafio novo. Nós é que não o sabemos entender, e possivelmente não estamos preparados para o fazer. Não sabemos aproveitar o seu sentido de justiça. A juventude é muito sensível à discriminação, à injustiça social, à pobreza, à ganância. São mais sensíveis à partilha, ao amor, a viver a vida com intensidade. E se por vezes se perdem, é porque não lhes apontamos o caminho.
— Plenamente de acordo — disse o Cardeal africano — É no meio do mundo que devíamos estar e não enfiados nos templos, supostamente a agradar a Deus, e a cultivar apenas o ritual e o devocional, insensíveis às questões da justiça e do sofrimento humano. Já Aristóteles dizia : “O homem só é feliz quando pode desenvolver e usar todas as suas faculdades e capacidades”. No meu continente, isto não passa de uma miragem, ou melhor, de ficção científica. É difícil pregar o evangelho da forma dogmática que a Santa Sé deseja. Quando somos confrontados com mais de quatro milhões de refugiados em África, com uma degradação galopante do tecido social da humanidade, com milhões de pessoas sofrendo sob a miséria e a pobreza, tendo ao lado uma minoria que acumula riqueza e bem-estar. Quando somos confrontados com anos e anos de guerras intermináveis, com a maior taxa de mortalidade infantil, quando morrem aos milhares pessoas com doenças cuja cura existe há décadas, como é que podemos falar de um Deus que os ama? Uma vez, num hospital visitei crianças órfãs, estropiadas pela guerra. Uma disse-me assim: “já nada me interessa. A minha maior dor não é ser órfão de pais, é ser órfão de Deus”. Só através de comunidades de base, onde a solidariedade, a partilha prevalecem, é que tem sido possível fazer algo positivo. Temos de nos empenhar com a dimensão humana onde brotam valores de solidariedade, generosidade, dádiva. Temos de nos empenhar no respeito pelas diferenças culturais e até raciais. A propósito, e a título de brincadeira, vou partilhar convosco o seguinte: pouco antes de embarcar para vir ter convosco, fui abordado por muita gente, de todo o lado, que me diziam ter muita fé e esperança de eu vir a suceder ao Grande Papa. A Igreja, diziam, precisa de um Papa africano, para lhe dar uma dimensão mais humana. Eu, interiormente, ri-me. Imaginem um Papa negro. Mais de metade das beatas da Europa tinham uma síncope cardíaca. Não, a Igreja não está preparada para ter um Papa negro.
— Nem para isso, nem para muito mais — interrompeu o Cardeal americano — Aliás, como já referiram, a Igreja está agarrada a pensamentos e atitudes centenárias, muitas delas com origem em decisões tomadas em concílios, que foram realizados muito mais tarde à sua fundação, e que distorcem por completo a acção de Jesus Cristo. E isso torna muito difícil uma evangelização para o século XXI, uma vez que as pessoas hoje em dia têm já uma informação global sobre o mundo, têm mais cultura, além de ter outras propostas de vida mais fáceis e atraentes, naturalmente mais ilusórias. Talvez seja altura de colocar à reflexão deste grupo mais dois ou três aspectos ainda não referidos. Em primeiro lugar, a mulher. A forma como a Igreja, sociedade patriarcal e autocrática, vê a mulher.
A mulher, apesar de todo o discurso reinante ser de valorização e respeito, continua a não ser reconhecida como capaz ou apta a exercer as mesmas funções que o homem, na Igreja. Isto, como podem imaginar, no meu país é inconcebível. Eu próprio não aceito. Há uns tempos tive de resolver um pequeno problema numa paróquia. Um padre jovem, muito estimado pela população, foi transferido para outras funções, por absoluta necessidade da Diocese. Nunca passou pela cabeça de ninguém que a população se revoltasse. Ao ser colocado um outro padre, cujo perfil era idêntico ao anterior, a população levou imenso tempo a adaptar-se, mais por protesto do que por outra coisa qualquer. Passado algum tempo, o vigário da zona reuniu-se com algumas pessoas para avaliar a situação. Numa fase mais ou menos tensa da reunião, o vigário, inadvertidamente afirmou que aquela paróquia nem deveria reclamar muito, porque nunca “tinha dado nenhum padre à Diocese”, ou seja, nunca ninguém daquela paróquia tinha seguido a vocação sacerdotal. Então um homem respondeu-lhe: “Sr Vigário, acho injusto a sua afirmação. Sempre tive o maior empenho de que quando me nascesse um filho ele seguisse a vocação de sacerdote. Era o meu maior orgulho. Por ironia do destino, ou porque efectivamente Deus assim quis, assim me destinou, nasceram duas raparigas. Que culpa tenho eu de vocês só quererem rapazes?”
O vigário teve de se calar, claro. No mundo actual, onde a mulher tem já uma predominância na sociedade, em todas as áreas, não se compreende esta marginalização.
— Bom, então se falamos na mulher, teremos que abordar outro assunto que também está na ordem do dia. — falou o Cardeal brasileiro — A sexualidade. A nossa Igreja construiu uma neurose, senão mesmo um desequilíbrio sério à volta da sexualidade, por influências do Gnosticismo e do Maniqueísmo. À custa desta herança, construiu-se a ideia, já bem enraizada, de que as relações sexuais entre um casal, na melhor das hipóteses são toleráveis face à procriação, e na pior das hipóteses, um sinal do mal perpétuo que habita o mundo. E depois, ao longo da história da Igreja, tivemos diversos exemplos que ajudaram a denegrir a sexualidade. Marcião, Cristão Gnóstico, permitia o baptismo apenas às virgens, viúvas e casais que concordassem renegar ao sexo. Tatiano achava que o acto sexual era uma invenção do Demónio e achava que a vida cristã era impensável para lá dos limites da virgindade. Ora, a sexualidade conjugal é um factor determinante para a boa harmonia do casal. Todos nós sabemos isso. Eu costumo dizer que tomara eu que todos os casais que me procuram com problemas sérios de divórcio fizessem amor todos os dias. Quebravam as barreiras do orgulho, da distância, aumentavam os níveis de afectividade e sobretudo de cumplicidade. Temos de alterar estes pensamentos negativos à volta da sexualidade. Ao invés, devemos esforçarmo-nos por divulgar a ideia de sexualidade responsável, tendo em vista o amor e a harmonia. A sexualidade só é má quando é mal utilizada, quando em vez de promover a estabilidade afectiva entre os casais, provoca exactamente o contrário. Os desvios que a sexualidade pode trazer, nomeadamente a pedofilia tão em voga ultimamente e que também nos tem sido extremamente cara, resultam muitas vezes da imagem distorcida que nós, Igreja, ajudámos a criar. Também contribuímos para ela. A mensagem que tem de ser transmitida é que a sexualidade responsável torna os casais mais felizes. Casais mais felizes tornam famílias mais felizes e famílias mais felizes permitem o crescimento mais saudável de indivíduos. E indivíduos mais felizes fazem sociedades mais felizes, menos problemáticas.
— Sem dúvida. — retorquiu o cardeal americano — A sociedade americana, como sabem, vive sempre o dilema da sexualidade, por vezes levada ao extremo, exactamente por uma questão de afirmação perante respostas tão intolerantes e tão drásticas que nós por vezes damos. E como sabem, a pedofilia tem sido uma caso sério na Igreja americana, não vale a pena escamotear a situação. E isso leva-nos a pensar na sexualidade do clero. Há uns tempos, ao reler determinadas obras que estudei no tempo de seminário, altura em que não tinha espirito critico sobre nada, aceitava de boa mente toda a informação e formação prestada no seminário, como sendo toda a suprema vontade de Deus, dei com um pouco da história sobre o celibato imposto aos padres. Foi exactamente a partir das ideias de desconfiança quanto ao sexo conjugal que a partir do século quarto a Igreja decretou leis proibindo os padre de terem relações sexuais com as respectivas mulheres, ou de terem filhos. Isto significa que no inicio da formação da Igreja, este problema nunca se colocou, e os padres tinham uma organização afectiva igual à de todos os homens. Curiosamente, todos os padres que a partir desta decisão se recusassem a cumprir, corriam o risco de espancamentos públicos, prisão, demissão do sacerdócio e inclusivamente invalidação dos casamentos, ficando as mulheres e os filhos reduzidos a escravos da Igreja. Estão a ver o que custa explicar esta situação aos jovens de hoje, tendo como base tudo isto que acabei de relatar. Não faz sentido nenhum, é um perfeito disparate e é altura de analisarmos esta questão com muita idoneidade. Possivelmente, se já tivéssemos tido a coragem de o fazer, ter-me-ia poupado alguns dissabores bem recentes.
— É claro que a questão do padre se casar ou não, deverá sempre ser uma decisão pessoal. — afirmou o cardeal africano — E todos temos funções importantes a desempenhar, sendo casados ou não. É uma questão de a Igreja reflectir profundamente sobre novos modelos de evangelização, e não estar agregada a modelos já gastos e cansados. Outro aspecto importante a reflectir: vivemos num tempo em que o dinheiro se impôs à maioria das pessoas como o valor primeiro e absoluto, o deus por excelência. Mesmo na nossa Igreja, grande parte dos seus membros com responsabilidade prestam culto sem se dar conta que ele é um Deus-Demónio, devorador de vidas que jamais se dá por satisfeito. Temos de assumir que a verdadeira “religião” é a opção pelos pobres, que são cerca de oitenta por cento da população mundial. É aí que Jesus faz sentido e falta. E é essa também uma das mensagens que temos de fazer valer neste Conclave, a par de todos os outros temas que aqui partilhámos.
Todos acenaram com a cabeça em sinal de concordância. Todos sentiam uma necessidade enorme de a Igreja se virar mais para o Homem, estar mais perto da realidade, para a poder transformar.
O avião estava já na fase descendente, pelo que todos fizeram um pacto de silêncio à volta da conversa tida neste voo. Prometeram ficar fieis a estas ideias e tentar difundi-las de forma cautelosa no Conclave, embora todos sentissem que a estrutura ainda estava muito longe da abertura necessária para que algo mudasse. Mas isto seria o principio, seria o fermento que iria levedar a massa. Sobre isso ninguém tinha dúvidas. Ninguém.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A angústia de existir

— São pelo menos trinta metros de altura — pensou, olhando a enorme massa de água que corria lá em baixo.
Pendurado na estrutura metálica da ponte, olhava o rio que banhava a cidade e que tão boas recordações da infância lhe trazia. Tinha planeado para esta noite aquilo que para si era o maior acto de liberdade do ser humano. A sua ansiedade era enorme, porque não sabia se iria ter sucesso ou não. De qualquer forma, mesmo que ninguém aderisse, iria fazê-lo sozinho.
A noite estava agradável. Uma suave brisa envolvia a sua cara, criando um cenário impróprio para a aventura, se é que se pode chamar assim, que iria praticar nesta noite.
Lembrou-se da sua mãe, que naturalmente estaria, naquele momento, inquieta pela sua ausência.
Foi criado pela mãe, que sempre foi mãe e pai para ele. Trabalhou de sol a sol para que o seu filho tivesse tudo e que nunca lhe faltasse nada. De dia trabalhava na fábrica das redes e à noite ainda ia fazer limpezas ao escritório de uma multinacional. Isto levou-o a passar muito tempo sozinho, o que nem sempre foi positivo, pois foi também a necessidade de ultrapassar a solidão que o levou a procurar caminhos que o levaram ao lamaçal da vida. Sente neste momento que nem sempre foi justo e reconhecido à dedicação e ao amor da sua mãe. Afinal de contas, ela fez mais do que podia para que a sua vida fosse de outra forma.
Do seu pai, ou melhor, do seu progenitor, porque pai é muito mais do que participar na criação, poucas recordações tem. Em determinada altura preocupou-se em conhecê-lo, mas o seu progenitor nunca se interessou. Era como se nunca tivesse existido.
Apesar disso, sua mãe nunca disse uma palavra contra ele, nunca o incentivou a ser contra o progenitor.
Uma vez encontrou-se com ele, mas o sentimento de abandono veio ao de cimo, e nunca mais o quis ver. Há uma fase na nossa vida em que os nossos pais são os nossos ídolos. Nunca tinha sentido isso, e para ele sempre foi uma sensação estranha ver o progenitor. Não fazia parte do seu mundo. Não lhe dizia nada, e era uma coisa muito esquisita quando ouvia os colegas falarem entusiasmados dos seus pais. Ao mesmo tempo sentia-se inferiorizado e deslocado no grupo de amigos, pois era o único que parecia ter nascido de uma relação assexuada. Desse tempo guarda uma profunda mágoa.
Nessa altura, na escola, começou a ter os primeiros problemas sérios da sua existência. Começou a ter uma apetência quase natural para só fazer asneiras, e quanto às aulas a vontade era nula. Conflitos em casa era todos os dias. Foi um tempo em que muita gente se metia na droga, e sentindo-se um pouco desamparado, lá caíu nessa asneira também. Chumbou. Lá em casa as coisas tornaram-se insuportáveis. A mãe já não lhe falava, gritava a toda a hora. Para mais, ele começou a roubar-lhe algum dinheiro e a vender algumas peças de decoração que havia lá em casa, para sustentar o vício, o que ainda agudizou mais o ambiente familiar. Na escola, foi parar a uma turma que era somente a pior turma, com pessoal de dezoito, dezanove anos, todos repetentes. Se na altura ele já tinha um comportamento difícil, a partir daí tornou-se um autêntico marginal. Foi quando decidiu sair de casa, dormindo pelas ruas, arrumando automóveis na baixa da cidade. Tudo o que ganhava gastava na droga.
— Devia ter morrido nessa altura — pensou.
Foi quando a conheceu. Primeiro um simples contacto visual. Ela estacionava o carro, dava-lhe uma moeda, e no inicio era apenas mais uma pessoa das centenas que por ali arrumavam os seus automóveis. Mais tarde, uma troca breve de palavras, face já a um certo hábito matinal e vespertino, o que aumentou a intimidade entre ambos, Depois um café juntos, mais tarde, no final do dia uma cerveja e uma conversa mais relaxada, sem pressas e sem stress. Um dia, depois de terem bebido umas bejecas ao fim da tarde, o desejo súbito de um passeio ao longo da margem do rio. De um lado, a calma das águas frias, salpicadas apenas ao longe por um navio deslocado. Do outro lado, o rebuliço da cidade em hora de ponta. Foi quando deram pela primeira vez as mãos, e se olharam mais profundamente.
Soube logo nessa altura que nunca mais seria o mesmo.
A partir daí, a relação foi subindo de temperatura. Começou a frequentar a casa dela. Vivia sozinha, vinha de uma relação amorosa fracassada, estava de certa forma carente, e ele tinha sido a coisa mais fantástica que lhe tinha acontecido. Meteu logo na sua cabeça que tinha de mudar completamente a sua vida, dar uma volta de cento e oitenta graus. Largou a vida degradante que levava, voltou para casa da mãe, e matriculou-se novamente na escola, à noite.
Começou a procurar um trabalho decente que lhe permitisse sonhar construir uma vida a dois, com ela. Não foi fácil, aliás foi de facto a parte mais difícil. Entregar pizzas ao domicilio foi o que se arranjou. Foram tempos muito duros. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Pensou em desistir, mas por um lado precisava do dinheiro para poder manter uma vida com alguma estabilidade.
Por outro lado tinha de continuar os estudos, sobretudo por causa dela, que era formada e tinha um excelente emprego numa empresa privada de grande implantação no país. Tinha que mostrar a ela e aos outros que tinha capacidade, que era capaz de vencer na vida.
A certa altura sentiu que a relação com ela tinha perdido algum entusiasmo, mas atribuíu essa quebra à vida atribulada que levava. Ela, por vezes, nem sempre estava disponível para se encontrar consigo, desculpando-se com afazeres da empresa.
Um dia, a bomba estoirou. “Tinha sido muito bom, foi muito importante para ela naquela fase difícil da sua vida, eu era uma pessoa muito generosa, como eu existiam poucos, que nunca o esqueceria na vida, só que tinha chegado à conclusão que a relação não dava, havia um grande fosso intelectual entre ambos, e além do mais, a pessoa da sua relação anterior, a tal que a tinha colocado muito carente e se não fosse eu não saberia como tinha aguentado tamanho desgosto, tinha reconsiderado e agora pretendia uma reconciliação e uma vida a dois mais séria e envolvente. E ela tinha pensado muito e chegado á conclusão que o seu coração ainda estava do lado dessa pessoa, pelo que não valia a pena insistir naquilo que não teria futuro. Seria sempre sua amiga, claro está, sempre que precisasse de alguma coisa era só dizer.”
E assim, sem mais nem menos, com um largo sorriso, virou-me as costas e nunca mais a vi até hoje.
Um tipo não é de ferro. Sentiu que tudo ia por água a baixo, nada do que tinha feito, de todo o esforço para mudar e melhorar a vida, fazia sentido. Perdeu-se um bocado, foi para a noite. Nunca se deitava antes das sete da manhã. Voltaram os problemas em casa, o emprego das pizzas foi-se e acabou a trabalhar num bar nocturno de ambiente degradante. Conheceu gente do arco-da-velha, gente que não interessa a ninguém. E foi então que a coisa se complicou. Uma noite, já o pessoal estava todo com os copos, uma malta, cliente habitual do bar, convidou-o para dar um passeio. Chegados a uma zona residencial, onde existiam umas lojas, encostaram o carro e pediram para aguardar um pouco, pois tinham de ir dar um recado a uma pessoa amiga que vivia num daqueles prédios. Ficou dentro do carro e de repente ouviu uma sirene estridente, uma gritaria infernal, e quando deu por si, estavam dois polícias ao pé do carro a pedir-lhe para os acompanhar. Os seus amigos nunca mais os viu, soube mais tarde que estavam a assaltar uma das lojas. O carro era roubado, e ele, por mais que jurasse a sua inocência, não conseguiu que alguém acreditasse nele. Foi passar uns tempos ao xelindró. A sua mãe ia morrendo de vergonha. Foi a pior experiência de toda a sua vida. Pediu à mãe para a procurar, pois ela tinha bons conhecimentos e podia ajudá-lo. A resposta veio dois dias depois. Que não se lembrava de ter conhecido ninguém parecido com ele, que deveria haver algum engano, naturalmente. Quando saíu, o mundo estava definitivamente ao contrário. Procurou arranjar trabalho, mas o mais que conseguiu foi numas bombas de gasolina. Mas quando descobriram que era um ex-presidiário, alegaram que estavam fartos de ser assaltados, que poderia ser um informador, e como tal o melhor era pôr-se ao fresco antes que a coisa se complicasse. E ele, como complicações já tinha que chegasse, veio-se embora, revoltado com tudo e todos. Os dias passaram a ser em total isolamento, fechado em casa. Pouco saía, não queria contactar com ninguém. O silêncio era enorme, apenas quebrado pela angústia da sua mãe. A sua existência passou apenas a ter uma duvida: para quê viver?
Foi quando lhee deu para esta coisa da internet. E lembrou-se deste desafio. Estaria sozinho nesta angustia?
“Aqui estou, empoleirado nesta ponte à espera da resposta à minha dúvida. O e-mail era claro e objectivo. Seria bom que alguém viesse, ou melhor, seria muito mau. Afinal de contas, ninguém vive para este desfecho. Mas quando nunca se foi feliz, não se é, e o mais provável é que nunca se seja, para quê adiar isto? Não passará de hoje, ao menos no meu destino quero mandar eu.”
Começei a ouvir passos. Eram várias pessoas, pelo barulho descompassado que se sentia. Ouvi uma voz ao longe:
— Patinho Feio?! Estás aí?
E mais passos, agora cada vez mais perto.
— Patinho Feio?! Estás aí?
Fiquei aterrado e ao mesmo tempo feliz, que coisa estranha. Mal consegui balbuciar:
— Estou aqui... aqui mesmo!
E de repente comecei a ver-me rodeado de muita gente, nova como eu, com os aspectos mais diferentes que já alguma vez tinha visto. E todos falavam ao mesmo tempo:
— Patinho Feio, és tu? Viemos ao teu encontro, conforme pediste. Queremos ser tão dignos como tu de escolher o nosso futuro.
Eu não conseguia esconder a cara de surpresa que tinha. Nunca pensei que a minha mensagem tivesse tantos adeptos.
— Mas... quem são vocês?
— Jovens como tu, desenraizados, inadaptados, incompreendidos, e sobretudo, não amados. — responderam em uníssono.
Talvez por ver a minha cara de espanto, uma rapariga adiantou-se e disse-me:
— Chamo-me Ana ou Marta, ou ainda Madalena ou Carolina. Tenho vários nomes e ao mesmo tempo não sou ninguém. Não penses que és só tu que anseias pela liberdade e pelo amor. Fiquei sem pai e mãe desde muito cedo, aliás nem me lembro muito bem deles. Quem ficou a cuidar de mim foi uma tia, que passava o tempo a bater-me e a rogar pragas pelo facto de me ter a seu cargo. Vivi durante anos num estado de medo permanente, em constante sobressalto. Cresci assim, e fui desenvolvendo uma certeza: não iria aguentar para toda a vida este inferno. Um dia conheci um rapaz, que me prometeu este mundo e o outro, e me deslumbrou com os seus conhecimentos e o seu charme. Lembro-me com afecto dos encontros secretos debaixo do grande plátano que existia no centro da minha aldeia, testemunha dos primeiros beijos e das primeiras carícias. Nesse plátano ficaram gravados a canivete corações atravessados por setas jurando amor eterno. Um dia fugimos para a grande cidade. No horizonte, grandes sonhos de felicidade e de vida próspera. Os primeiros tempos foram vividos na rua. Como éramos jovens e apaixonados enfrentávamos a vida com um sorriso nos lábios. Ele trabalhava nas obras e eu ia para os parques dos hipermercados arrumar carrinhos. Começámos a ter alguns amigos, todos marginais da vida, como nós éramos, e ao fim de uns tempos, convidaram-nos a ir viver com eles, numa casa desabitada e completamente degradada. Apesar de ser mais parecida com uma lixeira do que propriamente com uma casa, foi o nosso primeiro tecto, onde partilhámos bons momentos e alguns menos bons. Mas o destino acabou por ser outro. O que ficou da relação foi uma gravidez inesperada. Perante esta responsabilidade, ele desapareceu e nunca mais o vi. Acabei por ser abandonada por ele e pelos seus amigos. Com um filho nos braços para criar como futuro próximo, senti na pele a solidão angustiante de quem nunca teve, não tem e nunca terá nada da vida a não ser ilusões e sonhos efémeros. Senti o desespero de não saber para onde ir nem a quem pedir ajuda. Voltar para a minha aldeia, junto da minha tia estava fora de questão. Ao deambular sem sentido pelas ruas da cidade tendo como solução no horizonte pôr fim à vida, encontrei uma antiga colega quando arrumava carrinhos nos hipermercados. Por seu intermédio acabei por ser acolhida numa casa de passe, passando a conviver com outras mulheres, que vendendo prazer e ilusões recebiam como pagamento o infortúnio da vida. Ali fazia os trabalhos da manutenção da casa, como a limpeza e a comida. E foram elas que me deram solução para a minha gravidez, que, na opinião delas, só me iria complicar a vida. A criança mal nasceu, tinha à sua espera um casal de estrangeiros, futuros pais adoptivos do meu filho, que eu nunca mais vi. Uma parte de mim, a mais importante, desapareceu. Foi e é a maior mágoa da minha vida, uma mágoa profunda e dilacerante, que nunca mais me abandonou, e que me fez sentir que a vida às vezes não devia valer, devia ser como um gravador de cassetes, deveria ter uma tecla para andar para trás a fita e gravar de novo. Passei a “trabalhar” como as outras raparigas. Mas eu, que vendia prazer, quem me dava prazer a mim, quem me acarinhava e ajudava a suportar esta dor, esta angústia? A vida deixou de ter sentido, definitivamente. Ouvi o teu apelo e estou aqui para ser solidária contigo e partilhar contigo a decisão que tomaste para esta noite e que é minha também.
Ia chegando cada vez mais gente anónima, em silêncio.
— Eu chamo-me Zé, um nome vulgar e sem importância. Ou melhor, eu é que não tenho importância. Sou filho de emigrantes, nasci naquilo que hoje se chama um bairro problemático. A minha mãe abandonou-me aos quatro anos, farta de levar porrada do meu pai. Fiquei aos cuidados dele, que estava sempre bêbado e sem emprego certo. Por isso muitas vezes não havia comida na mesa, apenas porrada atrás de porrada. Quando entrei na escola, aos seis anos, talvez pelo exemplo e pelo ambiente diário que tinha em casa, comecei a demonstrar toda a minha agressividade, batendo não só nos colegas, mas também na professora. Era a forma de me afirmar. É claro que isto não iria durar muito, não porque a escola conseguisse modificar-me, mas porque comecei a faltar com frequência. Convivia nessa altura com um grupo de vizinhos que tinham formado um gang cuja especialidade era assaltar tudo o que aparecesse à frente, e isto tudo me seduzia. Comecei a fumar e andar à boleia na vida da marginalidade e do crime. Ao principio eram só assaltos a carros. Fui preso várias vezes, mas como era menor, acabava por não ter grandes chatices. Mais tarde pratiquei assaltos à mão armada a bombas de gasolina e ourivesarias. Acabei por ser preso. Na prisão, em vez de me corrigir, aprofundei os meus conhecimentos, não só na arte do crime, como conhecimentos e influências que me ajudariam depois de sair da pildra. Cá fora, quem é que se interessa em dar um emprego a um ex-presidiário? A tentação é grande e com os conhecimentos adquiridos, dediquei-me ao tráfico de droga. Fui preso novamente. E tem sido sempre assim, mais tempo na prisão do que cá fora. Faz sentido? Desperdicei a minha vida, não vejo horizontes positivos no horizonte a não ser as grades da prisão. A vida assim não vale a pena, pelo que tendo conhecimento da tua proposta, resolvi adoptá-la para mim próprio. Cá estou, conta comigo.
— Poderá uma paixão de adolescente durar uma vida inteira? — questionou um homem que trazia uma camisola onde se podia ler “Homem Sem Nome”. — Eu queria acreditar que sim, mas hoje vejo que é uma utopia demente acreditar nisso. Foi sempre a minha paixão. Porém nunca nada estava bem. Hoje era isto, amanhã aquilo, no outro dia outra coisa qualquer. A minha luta diária era agradar para segurar aquele que era o amor da minha vida. Acabei por dar cabo de mim e dos que me rodeavam. Perdi tudo, a família, os amigos, a paz interior, a oportunidade de ser feliz. Hoje deixei um poema escrito:

Devo crer...
Que o amor é fogo
Que arde sem se ver?
Então...
Como ter um incêndio que dilate o meu ser?
Então...
Como fazer
Para pôr o meu peito a arder
Se com o teu olhar
Frio ao amanhecer
Me sinto lentamente
A desfazer...

— A poesia, sim a poesia... — murmurou a multidão baixinho.
Ouviu-se uma outra voz, dispersa, ao longe, declamando:

De repente
Fugi da “gente”
Como quem mente
Perdidamente
Para te desejar ardentemente
Um Natal diferente
Onde o espírito prepotente
E a calúnia indecente
Deixem de existir finalmente.
De repente
Olho desesperadamente
Para um “Carnaval” demente
De fachada inconsistente
E de pobreza imponente.
Desejar-te tristemente
Uma alegria impotente
Para tentares viver alegremente
Numa vida inconsequente
È a minha angústia, exactamente

Uma outra voz se ergueu:

O sofrimento
foi lançado à multidão
Com o pequeno gesto
De uma mão
Consumir desalmadamente
É a razão
Imaginar a felicidade
É a ilusão
O futuro da podridão
É o lucro até mais não
A droga transformou-os em solidão
Na violência perdeu-se um irmão
Ganhou-se o desespero
Da prostituição
Ficaram os náufragos da civilização
E a vida é uma desilusão
Uma total desilusão...

— Uma total desilusão... — repetiu Patinho Feio.
Cada vez chegavam mais pessoas, em silêncio.
Aos poucos foram dando as mãos, formando um cordão humano, silencioso. Olharam-se nos olhos, e então, num gesto colectivo, saltaram todos. Sem excepção.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Patetice

Desculpe intrometer-me nesta história, caro leitor, não quero de maneira nenhuma ser mal-educado ou oportunista, mas aproveito a ausência do narrador, para poder partilhar consigo a minha experiência do sonho, que não é menos fantástica do que a história anterior.
O meu nome é muito conhecido, por ser um dos produtos de sucesso de uma grande empresa americana de desenhos animados, como se dizia no meu tempo. Chamo-me Pateta, sou um cão, de cor amarelada, e tenho sempre o papel de fazer disparates atrás de disparates, porque se descobriu que as pessoas riem mais facilmente com os disparates. Este estilo de vida, parecendo um pouco desvairado ou aberrante, tinha pelo menos a vantagem de não exigir muito de mim, pelo simples facto de não ter nenhumas responsabilidades a assumir. Era uma vida pacata, calma, salpicada aqui e acolá com os desvarios normais da enredo da história, que faziam rir por este mundo fora a garotada e não só. De maneira que tudo seria eternamente constante, sem grandes alterações, se de repente não tivesse existido uma pontinha de ganância para alterar o curso da história. Aliás, é curioso verificar que todas as alterações abruptas da história humana tem como origem a ganância, essa ambição desmedida de conquista de poder. E de uma forma incrível, ou talvez não, essa “doença secular”, penso que podemos chamar-lhe assim, transmitiu-se para a banda desenhada. Pensando melhor, tinha de ser mesmo assim.
Afinal a banda desenhada foi inventada pelos humanos e claro, tem de reflectir todos os seus valores.
Foi assim que eu me vi envolvido na teia da conquista do poder.
Primeiro desconfiado, pois era tudo uma novidade para mim. Depois entusiasmado, fruto da estratégia enganosa, hoje posso falar assim, que me foi oferecida sem eu duvidar minimamente.
Lembro-me de tudo ao pormenor. Era um dia calmo, de sol brilhante, sem nuvens a importunar a beleza do céu azul. Ali estava eu, roendo um osso na falésia, desfrutando de uma paisagem magnifica sobre o mar sereno. Que mais precisava eu além de toda esta tranquilidade? Entretido desta forma nem me lembro de alguém me chamar. Só quando os gritos se tornaram insuportáveis é que me apercebi que era o meu nome que estava na origem de todo aquele alarido.
— Pôxa Pateta, você é cá um distraidão, heim?! — Ouvi eu.
— Oi, Tio Patinhas — disse, surpreso com a aparição meteórica desta personagem, símbolo do vil metal.
— Aca — respondeu Tio Patinhas, que de momento se esqueceu do motivo que o tinha levado ao meu encontro.
Ficámos a olhar um para o outro, eu à espera que ele continuasse, e ele a ver se conseguia lembrar-se da razão de ali estar.
— Ah, já me lembro. Quero que você se arrume direitinho, se ponha charmoso, porque dentro de meia-hora tem de ir comigo a uma reunião muito importante, na sede do PPPP. Rápido, viu?
— PPPP?! — Exclamei, surpreso.
— Sim, PPPP, o Partido Popular da Panela de Pressão. Não conhece, não?
— Não estou vendo não, cara, nem me lembro de nada com esse nome tão esquisito — afirmei com um ar de intrigado.
— Você é mesmo cachorro, né? — Olhou desalentado para mim — Então não se lembra do PPT?
— PPT?! – exclamei ainda mais confuso.
— Sim, PPT, Partido Popular do Tacho.
— Ah, sim senhor, esse conheço, é o partido dos políticos inúteis, cujo símbolo é o esse com dois traços ao alto.
— Viu como já conhece? Então, é isso aí, só que agora alterou-se o nome, para dar mais importância. Estava na altura de melhorar a imagem do partido, e assim promoveu-se o tacho a panela de pressão. Bom, é lá a reunião, toca a despachar que tempo é dinheiro, e não se pode desperdiçar um cêntimo que seja.
Ainda meio atarantado, lá fui para casa aprontar-me, levando o osso comigo.
— O que é isso? Não pense que vai levar esse pestilento osso para a reunião, seu moleque rafeiro. — vociferou Tio Patinhas, muito vermelho.
E lá tive de abandonar o meu melhor amigo.
A viagem foi muito turbo-lenta, pois a condução do Tio Patinhas, após os primeiros cem metros, dava para sentirmos náuseas e vómitos com fartura. Isto para não falar da carripana do velho, cuja fumarada saía por todo o lado menos pelo tubo de escape, bem como da barulheira infernal que se ouvia lá dentro, fruto da viagem ser realizada sempre em primeira, como se o machimbombo não tivesse mais mudanças.
Após estes sobressaltos inesperados, chegámos finalmente à sede do PPPP. Era um edifício discreto, no centro da cidade, cuja fachada em tijoleira vermelha ia mudando lentamente de cor, para negro, devido à poluição e sujidade. O interior era cómodo e mais arejado. Mal entrámos, e após os cumprimentos da praxe, feitos à pressa, fomos logo conduzidos por um amplo corredor até uma sala, onde éramos aguardados por cerca de vinte personalidades, cuja característica comum eram o ar de desespero e ansiedade que brilhava nas suas caras.
— Finalmente. — falou um dos presentes, com um ar sinistro.
— Há qualquer coisa que eu não percebo, — falou outro — fizeram-me esperar este tempo todo por causa de um velho pato caquéctico e de um cão?
— Este velho caquéctico é quem paga a campanha, sua besta, e o cão é o Pateta. E que eu saiba, foi isso que combinámos. Ou já se esqueceu de que precisávamos de um pateta para este trabalho? — berrou Tio Patinhas, com um olhar ameaçador.
O silêncio foi total. Ninguém se atreveu a abrir a boca. Rapidamente se colocaram em volta de uma mesa e deram inicio aos trabalhos.
Já podem imaginar a minha cara de espanto e de terror ao ver-me metido num ambiente destes. Os diálogos eram curtos e objectivos, feitos em voz baixa, de forma a que eu não ouvisse muito bem tudo o que era dito. Mas é óbvio que eles se esqueceram que eu sou um cão, e como tal, a minha audição é excelente. Por isso ouvi a conversa toda.
— Não vale a pena estar sempre a repetir que temos de seguir a estratégia delineada sem uma falha. — falou o Tio Patinhas — Já desperdiçámos imenso tempo e sobretudo muito do meu dinheirinho em coisas que não nos trouxeram vantagens. Por isso, eu peço ao Dr. Nunca que mais uma vez explique detalhadamente todo o processo, e vocês metam dentro do vosso pequeno cérebro, se o tiverem, que isto é para levar a sério, sem asneiras nem peixeiradas.
— Bem, — iniciou a palestra Dr Nunca — como já disse setenta e seis vezes, toda a estratégia do PPPP para ganhar as eleições passam pelas seguintes etapas:
Primeira – arranjar um candidato que não pense, não fale, não tenha ideias, não faça nada socialmente, de que nunca tenha ouvido falar, e que seja ao mesmo tempo simpática, brincalhona com as crianças e com os velhinhos. Com um candidato assim, ninguém nos poderá acusar seja do que for, ninguém poderá dizer mal de nós e a ideia que erradamente muito dos eleitores têm dos partidos, de que tudo isto não passa de um grande cozinhado para todos terem um tacho, pura e simplesmente desaparecerá da mente das pessoas. Refira-se também a mudança de nome e de logotipo do partido, medida que se insere na estratégia de aparecer á frente do eleitorado como um partido novo, com novas ideias, novas pessoas com uma espécie de vontade de trabalhar e de fazer coisas diferentes, embora naturalmente, e convém que isto fique muito bem claro, nós é que continuamos a mandar no partido e o partido serve apenas para “legalmente” atingirmos os nossos objectivos, que são, como sabem, a satisfação dos nossos interesses particulares.
Segunda — Arranjar um programa eleitoral cheio de coisas boas, que os eleitores gostem de ouvir, como por exemplo, garantir empregos e bons ordenados para todos sem trabalhar, excursões diárias para todos os reformados e pensionistas, e já agora, para as criancinhas e para os paizinhos delas, amplas zonas verdes, boas estradas á porta de casa, descontos substancias na mercearia da rua e o direito a beber uns copos por conta do Estado na taberna da esquina, bem alindar todos os largos das capelas existentes. Em off-record, prometer aprovar os projectos imobiliários a todos os patos bravos do sistema, nem que seja em cima do rio, bem como distribuir enormes quantidades de dinheiro a tudo quanto é organização de festas e arrais nas ruas, becos, aldeias e vilas. Toas estas promessas aumentam significativamente a auto-estima dos eleitores, que anda sempre paupérrima, porque na prática nenhum político se preocupa a sério com as pessoas, como já sabem. E assim, deslumbrados com todas estas promessas, os eleitores vão votar em massa no nosso partido. Depois de lá estarmos, outro galo cantará. O nosso, claro está.
— Como vêem, as eleições são para ganhar. — disse Tio Patinhas. — É preciso nunca perder o que eu vou dizer de vista: não se podem dizer as verdades na política. A mentira é o grande trunfo daqueles que querem ser vitoriosos na política. Tem de se enganar o povo. Quanto maior for o engano, mais o povo estará do nosso lado. Ora o que acontece é que, após ganharmos as eleições, não iremos fazer nada daquilo que prometemos. E que desculpa vamos dar? Bom, simplesmente vamos dizer que encontrámos a situação toda de tanga, miserável, que os responsáveis são os governantes anteriores, e á medida que o povo se for apercebendo de que não estamos a cumprir, falamos sempre dos governos anteriores. E como a situação é tão grave, tomaremos medidas drásticas para resolver a crise. Por exemplo, as zonas verdes tem de ser rentabilizadas. Serão urbanizadas, por nós, está claro, algumas passarão mesmo a loteamentos industriais, e quanto mais fábricas existirem, mais nós ganhamos. Não se esqueçam que a qualidade de vida das cidades está na poluição, no metro, na confusão, etc, não é verdade? Senão as pessoas não fugiam cada vez para as cidades. È porque gostam e apreciam viver assim. E as pessoas cada vez mais se concentram nas cidades.
E a conversa continuou pela noite dentro. Eu, encolhido a um canto, assistia a tudo isto de forma serena, questionando-me sobre o motivo de ali estar. A determinada altura ouvi falar no meu nome. E logo a seguir, muitas palmas e vivas. Todos estavam a olhar para mim, sorridentes. Tio Patinhas levou-me para o meio de todos os presentes, e muito solenemente exclamou:
— O Pateta é o nosso melhor candidato. Dificilmente arranjaríamos melhor. Proponho um brinde ao nosso candidato. Viva o Pateta.
— Viva — responderam todos a uma só voz.
Vi-me assim alvo de atenção especial. Nem conseguia articular uma palavra com tudo aquilo que me estava a acontecer. Ser candidato de um partido era um estatuto para todos menos para um Pateta. Mas pelos vistos, estava na moda.
Fui logo avisado de que só podia falar aquilo que eles decidissem. Não podia tomar nenhuma iniciativa sem a sua autorização ou o seu consentimento.
Passei a andar vestido de fato e gravata, o que convenhamos não era tarefa fácil, pois cada vez que andava, pisava sistematicamente a ponta da gravata. Outra coisa horrível para um cão, mesmo da banda desenhada, era o facto de ter de tomar banho todos os dias.
Passava o tempo em chás de caridade, visitava as escolas para oferecer presentes, participava em programas de televisão e rádio e ia para as feiras e mercados beijar peixeiras fedorentas. Tinha que fazer um esforço tremendo de civilidade quando entrava nos talhos, ao ver aquela chicha toda pendurada. Mas o mais estranho foi no dia em que acordei e reparei que toda a cidade tinha cartazes enormes com a minha cara e o símbolo do PPPP em baixo. Parecia que estava metido num enorme jogo de espelhos gigante, pois para onde quer que olhasse dava de caras comigo próprio. A minha cara tinha um olhar simpático e bonito, tal forma terno, que cheguei ao ponto de me sentir muito entusiasmado para votar em mim próprio. O marketing funciona mesmo.
Nesta fase eu andava de certa forma entusiasmado, e cheguei a convencer-me que iria mudar tudo o que estivesse ao meu alcance para melhorar a vida de toda a gente.
E assim foram passando os dias, em ritmo alucinante, rumo ao dia das eleições. Aproximou-se então o dia D, o dia do grande comício/festa, onde iria fazer um enorme discurso, naturalmente escrito pelos patrocinadores da minha candidatura. Nesse dia, todas as atenções estavam viradas para mim, não porque eu fosse um ser especial, mas porque toda a gente tinha medo que eu não desempenhasse o papel que me tinham destinado. Passei horas na sede do PPPP a decorar o discurso que tinham elaborado para mim, e fui massacrado, acho que é o termo correcto, com atitudes a ter no palco durante o discurso, bem como a entoação da voz, as pausas certas no momento certo e sobretudo referir determinados assuntos que toda a gente gosta de ouvir e que sensibiliza os seus corações. Por fim, chegou a hora. Uma multidão inundava o pavilhão das actividades económicas onde se ia desenrolar o comício, com bandeirinhas e cartazes de apoio. A primeira parte do comício foi preenchida por um concerto musical, com um grupo da chamada música pimba. No intervalo interveio o Tio Patinhas, com um discurso de apresentação do candidato, que era nem mais nem menos do que a minha própria pessoa. Foi então que comecei a ouvir ruidosamente o meu nome, “Pateta, Pateta, Pateta”. Muito nervoso, e com o discurso escrito na minha mão direita, encaminhei-me para o centro do palco, sob um enorme aplauso vindo da multidão. Quando me preparava para começar a falar, sem saber como, o meu olhar cruzou-se com o olhar de uma criança. Um olhar terno, doce, de quem acredita que eu seria a pessoa disposta a contribuir para o seu futuro, um futuro de felicidade. Um olhar que é igual numa criança da minha cidade, do Iraque, da América Latina, de Moçambique, sei lá mais onde. Um olhar de esperança. Um sentimento de profunda angústia percorreu o meu espírito, perturbando-me gravemente. Afinal tinha sido inventado para divertir as crianças, e agora estava preparado para as enganar. Lentamente, amachuquei o papel que tinha na mão, olhei firmemente para frente, e em tom sereno resolvi aproveitar a minha única oportunidade para despejar tudo aquilo que me ia na alma. E comecei a discursar:
Caros amigos:
Existem várias razões para muita gente se envolver na política. Mas em primeiro lugar estão sem dúvida os grandes privilégios que a chamada carreira política permite àqueles que a seguem. E a ganância hoje é tão grande entre os políticos para poderem usufruir dos maiores privilégios, que na política abdicou-se à largos anos da integridade de carácter e honradez, sendo estes dois preciosos valores substituídos pela mentira, pela difamação e pela traição. Hoje não vos quero mentir. As crianças não merecem que eu comprometa o seu presente e o seu futuro. Vou falar-vos pelo coração e não vos vou enganar, conforme estava planeado. Todos na política sabem que as eleições só se ganham pela compra da consciência com o dinheiro, muitas vezes sujo, ou pela promessa falsa, pela mentira e pela demagogia. Não irei fazer isso, e possivelmente será o fim da efémera carreira política que me estava destinada. Mas não estou preocupado. A minha consciência não está nem nunca esteve à venda. Ao longo da campanha eleitoral senti-me como se estivesse a navegar no cano do esgoto dos interesses, da ambição e da conveniência. Num dia dizia uma coisa, orientado pelo Marketing, no outro dia negava tudo e prometia o contrário. Embora o discurso fosse pincelado aqui e acolá com novas palavras, o que é certo é que as ideias eram sempre as mesmas. Há largos anos que as ideias são sempre as mesmas, poucas e pequenas, o que demonstra bem o quanto os políticos se estão nas tintas para de facto contribuírem para o desenvolvimento harmonioso todos nós. Só existe uma diferença entre os diversos partidos: a intriga, o grande pilar da luta partidária. E é exactamente por termos este tipo de política, que se pode perfeitamente classificar de política de trampa, que constatamos esta realidade.
O que faz com que este país mantenha orgulhosamente um atraso significativo em relação aos outros países europeus, não é, como na teoria supostamente seria, a localização geográfica, a qualidade da água, o sol, etc, etc, etc. O que nos distingue significativamente dos outros países é uma coisa chamada liderança. Ou seja, os outros países tiveram, nos últimos 50 anos, líderes que sabiam o queriam, tinham projectos, e desenvolveram os seus países para níveis que para nós fazem parte do reino da ficção científica. Nós, nos últimos 50 anos, não tivemos lideres, tivemos apenas tachistas. Fomos liderados por pessoas, que hoje são classificadas como pessoas importantes, apenas e só porque ocuparam lugares importantes. Em vez de projectos e de trabalho, geriram este país como se ele fosse uma mercearia do século XII.
A política, que deveria ser participada por todos os cidadãos, é um negócio de "empresas" com o título pomposo de partidos políticos, cujos principais objectivos são satisfazer os interesses daquilo que hoje é vulgar designar por "lobbie" partidário, ou seja, garantir a todos os "boy's", "girl's", afilhados, afilhadas, padrinhos e todo o tipo de "deliquentes do tacho", presentes e futuros risonhos à custa dos nossos impostos.
— Eh pá, eu nem acredito naquilo que estou a ouvir — disse um homem que estava embasbacado a ouvir Pateta.
— Até que enfim que alguém diz as verdades, caramba — ouviu-se uma mulher de aspecto estranho.
E Pateta continuava:
... A política tem sido apenas a gestão "do tacho para os amigos e compadres". Por isso, continuamos com a Saúde que temos, "doente" há vários anos, mas que mesmo assim dá muita "saúde" a pequenas elites sociais. Continuamos a ter padrões ao nível da Educação que rondam valores aproximados do "zero", mas que sustentam, ao nível privado, pequenas elites sociais. Vejam por exemplo, as riquezas que surgiram ligadas à exploração de colégios privados, sustentados pelo Estado, ou seja por todos nós. Hoje, e em cada dia que passa, vivemos a angústia permanente de ser cidadão, de não saber nada sobre o rumo que o país segue, de não poder programar a nossa vida, porque hoje temos um ministro que pensa assim, no outro dia pensa assado, no outro dia pensa cozido, no outro dia pensa frito, tudo consoante os interesses de "grupo" do momento. O curioso é que, constatando que a vida está cada vez mais difícil para todos os cidadãos, os políticos continuam a ter uma vida "à grande e à francesa", indiferentes às dificuldades de todos nós.
Votar hoje é apenas e só "legalizar" os tachos de deputados, ministros, secretários de estado, assessores disto e daquilo, directores, presidentes de tudo e mais um par de botas, sempre escolhidos de acordo com os interesses do partido e não de todos nós, sempre escolhidos não pelo mérito e competência, mas pelo compadrio e "interesses instalados". Votar significa "legalizar" que cidadãos com problemas com a justiça, sejam deputados para fugirem á própria justiça (lindo exemplo, que contentes que ficamos ao ver os nossos queridos impostos sustentarem charlatões deste calibre), que deputados apresentem baixas médicas para irem trabalhar para empresas do Estado e depois a Lei seja violada para garantir um belo tacho numa embaixada. Eu pergunto: quem tem legitimidade para nos obrigar a cumprir a Lei?
Votar significa "legalizar" que se premeie com cargos públicos, pagos por todos nós, o esforço "desinteressado(!!!)" dos rapazinhos e rapariguinhas que andaram a colar cartazes do partido, sem experiência de vida e maturidade, para terem assim um futuro garantido e o partido poder ficar mais descansado quanto ao aspecto de ter sempre mão de obra barata e disponível.
Sinceramente, não estão cansados de sustentar esta "trampa" toda? É assim a nossa democracia, A DEMOCRACIA DOS TACHOS!... Sabem qual é o partido político com mais futuro? O partido da abstenção. Será porque a populaça é muito ignorante, ou será que tem a ver com a qualidade, honestidade, competência e bons exemplos da classe politica?
— Mas porque será que só os patetas é que dizem as verdades? — perguntou outra pessoas que estava admirada com o discurso de pateta.
... A populaça não serve só para sustentar os políticos e amiguinhos... Quem liquidou a agricultura, desertificou o interior do país e promoveu o caos urbano? Foram os cidadãos tributáveis? Ou foram os políticos, todos sem excepção?
Os partidos políticos são o maior cancro da democracia neste país. Nas eleições, todos os programas são uma mentira. A campanha eleitoral traduz-se na maior festa da hipocrisia social. De repente, os políticos lembram-se da "populaça". Depois de eleitos, nunca mais se lembram do programa, nem se acham obrigados a cumprir, pelo contrário, consideram-se dispensados de tal. Porquê? Porque a partir daí, os nossos democratas esmeram-se a tirar "proveito" do sistema e a colocar os afilhados e afilhadas nos lugares certos, para governarem mais à vontade. Não se iludam. Por detrás desta máquina infernal de propaganda, cheia de falsas promessas, estão meia dúzia de pessoas interessadas apenas em dominar o poder, com o objectivo de concretizar as suas negociatas. Com os nossos recursos, com o nosso dinheiro. Talvez por isso seria bom pensar nisto: não é alternando de partido que se muda seja o que for. Eles são todos iguais, porque no seu intimo todos querem o mesmo: o poder. O que nós temos de mudar é este sistema falso de democracia, em que somos iludidos com as vãs promessas de que somos nós que decidimos, que mandamos. Só há uma solução: não votar, não alimentar este sistema. Assim ele morre por falta de alimento. E é isso que eu vos peço: não votem.
Foi nesta altura que aconteceu algo estranho e inesperado. Ouviu-se um estrondo e todo o palco ficou às escuras. Tinham desligado a energia.
Ao mesmo tempo senti uma pancada fortíssima na cara, seguida instantaneamente de uma forte dor no olho esquerdo, sinal que tinha levado um murro muito forte, que me mandou a rebolar pelo palco fora. E ouvi a voz do Tio Patinhas, em surdina dizer:” Meu moleque safado, se pire da minha vista de vez.”
Toda a multidão se foi afastando aos poucos, e eu fiquei sozinho, aleijado, apenas porque resolvi dizer as verdades...

«Mas, por acaso alguém me pode dizer o que se passa aqui? Por acaso eu autorizei alguém a participar neste projecto literário? Aproveitam-se da minha ausência para se porem aqui a participar sem a minha autorização? Sr Pateta, agradeço que não volte a repetir a gracinha, ainda por cima, eu não tenho intenção de ir contra o sistema vigente, pois nunca se sabe se não precisarei dele. O Senhor foi indelicado e abusou da minha boa vontade. Não tenho e nunca tive intenção de o convidar a participar nesta história, pelo que mais uma vez agradeço o favor de se pôr a andar o mais depressa possível.
Safa, que um tipo até pode ter um ataque ao descobrir intromissões desta natureza.
Bom, adiante. Vamos lá tentar pôr ordem na casa. Apesar deste percalço insignificante, vou tentar criar outra história, mais actual e por isso mais do interesse dos leitores em geral. Não é fácil, não senhor. Vejamos... Ah, já sei, já me lembro do conto que pretendo para continuar este projecto. Vamos lá, mãos à obra.»

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Branca de neve

Anão número cinco tomava descontraídamente o seu café matinal, numa esplanada situada no centro de uma pequena cidade do interior. Era um hábito dos domingos de manhã. Vestido com o seu fato de treino preferido (e único, diga-se), de sapatos castanhos e meia branca a condizer, aproveitava para pôr em dia os acontecimentos desportivos, lendo com certa dificuldade o jornal mais vendido no país, o Rebola a Bola.
Mais uma vez, a sua equipa preferida resolveu dar-lhe um desgosto. Paciência, já estava habituado.
A esta hora, os outros seis irmãos andariam agarrados à moto-enxada, preparando a sementeira das batatas e da couve-nabo. Domingo era o único dia disponível para estas actividades de lazer e sobrevivência. Os outros dias da semana eram passados, de sol a sol, dentro da mina de carvão, onde todos trabalhavam.
Resignados com aquilo que o Criador lhes destinou, lá arrancam todos os dias de manhã, com as sopas de cavalo cansado no buxo, na motoreta Zundap, até às instalações da empresa mineira, onde picam o cartão à entrada, enfiam o capacete pela cabeçorra abaixo, e “ala que se faz tarde” para o buraco do seu ganha pão.
A manhã aproximava-se do fim e o Anão número cinco também estava a chegar às últimas páginas do Rebola a Bola. De súbito, um anúncio prendeu-lhe a atenção:

Mulher de futebolista!
Meiga! Muito Carente!
Boazona! Comilona!
Curvas perigosas! Sem pressa!
Conhece o petisco! Três pratos!!!
Vem provar...


Anão número cinco sentiu-se baralhado. Há muito tempo que andava a sentir uns calores dentro de si, a pedir-lhe qualquer coisa de diferente do buraco da mina onde verga a mola todos os dias. A falta de convívio intimo andava a perturbá-lo, embora mantivesse no maior segredo este seu desejo, não fosse o diabo tecê-las e virar motivo de risota na mina, onde o espirito de macho latino a cheirar a cavalo imperava e sentimentos destes davam azo a ser achincalhado pela vida fora.
Afinal de contas, talvez estivesse neste anúncio a solução do problema. Não precisava de dar satisfações a ninguém, não era discriminado pelo seu tamanho, motivo mais que suficiente para nenhuma rapariga se interessar por ele, e pelo menos “mudava o óleo”, que era aquilo de que andava mais precisado.
Estava decidido a ter esta experiência, embora algumas dúvidas pairassem no seu espirito de anão desconfiado. Atitude aliás natural de quem não tem uma experiência de vida alargada. Estava sobretudo intrigado com a frase “Três pratos”.
— Eh pá — pensou — será pequeno almoço, almoço e jantar?
Achava, como se dizia na gíria da mina, “fruta a mais”.
Sempre fora ensinado de pequenino, que é como quem diz, desde novo, porque pequenino se manteve ele até aos tempos de hoje, a desconfiar de galinha gorda. Ainda para mais sempre ouviu dizer ao Ti Zé das Couves, seu vizinho de longa data, (curiosamente, nunca entrou nas histórias infantis), que bastavam dez minutos para despachar a velha. Portanto, com três pratos incluídos, devia ser o dia todo.
Entrou dentro do café, pagou a conta e solicitou o telefone. Precisava de fazer uma chamada urgente para a família que vivia na grande cidade, desculpou-se.
Marcou o assunto para domingo, mas de lá uma voz muito feminina informou-o que o domingo era dia de folga, tinha de ser outro dia da semana. Insistiu, tinha de ser ao domingo, os afazeres profissionais, que o obrigavam a constantes deslocações ao estrangeiro, não permitiam outro dia. Omitiu deliberadamente a sua profissão de mineiro. Já que era assim, disseram-lhe do outro lado da linha, e uma vez que se tratava de um “gentleman importante”, podia ser no próximo domingo, concerteza, embora tivesse de pagar uma sobretaxa de dez por cento. Compreendia naturalmente, tratava-se de uma situação excepcional. Aceitou e combinou o resto dos detalhes. Desligou, pagou, contornou uma pergunta maliciosa do dono do café, — com que então, família longe, não é verdade? — E saíu sem mais demoras, que já se fazia tarde para o almoço.
De repente, apercebeu-se que estava com uma larica dos diabos. Nunca a Zundap acelerou com tanta alegria como neste dia.
— Conheço aquela voz, ia jurar que já a tinha ouvido em qualquer lado — cogitava, enquanto o vento lhe refrescava o cérebro aturdido com a aventura matinal.
Durante a semana que se seguiu, Anão número cinco até andava zonzo a pensar naquilo que o esperava.
Como será? — interrogava-se. De tal forma se envolveu nestes pensamentos que se tornou irascível para os irmãos e colegas de trabalho. O que se passará com este indivíduo? — pensava toda a gente. Em casa ninguém lhe podia dizer nada, que ele explodia imediatamente. Mal chegava do trabalho, comia qualquer coisa rapidamente e enfiava-se logo no quarto. Ficava horas deitado em cima da cama a idealizar o seu próximo domingo. Será que ao almoço é bacalhau? — pensava. Detestava bacalhau. O melhor era levar escondido um naco de pão com chouriço. Não, depois ainda podiam chamar-lhe parolo, e ele fazia questão de ser tratado como um príncipe.
Sempre foi o seu sonho. Ser príncipe. Só que nunca lhe deram semelhante papel. Há tipos cheio de sorte na vida. Já nascem príncipes, sem precisar de lutar por nada, vem tudo ter com eles, enquanto que outros, como ele, nascem feios, trabalham que nem desalmados para não ter nada, e quanto a vir alguma coisa ter com eles, só se forem desgraças e problemas.
— Amanhã não estou cá — disse de mau modo aos irmãos.
Um ar de espanto inundou a cara dos irmãos, pouco habituados à saída de qualquer um.
— Estão surdos? Eu disse que amanhã não estou cá — vociferou novamente.
— Ouvimos muito bem que amanhã não estás cá — disseram ao mesmo tempo os irmãos. E acrescentaram — Boa viagem. — E viraram costas imediatamente em direcção à horta.
Anão número cinco ficou espantado. Estava à espera que os irmãos, ao quererem saber o motivo da ausência dele, ficassem a morrer de inveja. Em vez disso, puseram-se “a milhas” com a maior indiferença do mundo. Foi como se tivesse levado uma facada nas costas. Não se lembrou, porém, do seu comportamento durante a semana para com os irmãos, pelo que este anúncio da sua ausência funcionou como um alívio geral para o resto da família.
Logo pela manhã, tomou uma banhoca, coisa rara, escanhoou a cara, vestiu a fatiota de ir à missa ao domingo e calçou uns sapatos pretos de verniz, muito brilhantes, a fazerem o contraste com a bela meia branca, um costume já antigo dos domingos de manhã. A excepção neste era o fato de treino, que ia ficar no armário até uma próxima oportunidade.
Pegou na motoreta e com um ar de felicidade estampado no rosto, acelerou a fundo, direito à cidade.
A morada indicada no anúncio não era propriamente no centro da cidade, era nos arredores. Nunca tinha por lá andado, pelo que se enganou algumas vezes, até que finalmente deu com aquilo. E aquilo era um bairro constituído por prédios que há vinte anos estão à espera do reboco exterior, esgotos a escorrer pelas paredes porque os tubos foram arrancados por serem necessários noutro lado, os caminhos que ainda não descobriram a palavra alcatrão. Os moradores apinhados em cada apartamento não conversavam. Gritavam e a linguagem usada começava naquilo que todos nós sabemos, e ia por ai acima, como se tivessem decorado o dicionário completo da asneira pegada.
À entrada, uma placa sugestiva catalogava de uma forma prática o local : BIDONVILLE DO EDEN.
Encontrou o prédio, e entre garotos ranhosos, mal vestidos, com um aspecto de Lin-Chung O Justiceiro da Bordoada, e mulheres desdentadas, de cabelo desalinhado e um suor fedorento, lá conseguiu chegar ao apartamento. Ainda ouviu uns piropos, do género — faço mais barato — ou então — um anão por aqui, a coisa não me cheira — ou ainda — homem pequeno, material grande — mas fez sempre ouvidos moucos a tamanhas provocações.
Tocou a campainha delicadamente durante dois minutos.
Pareceu a alguém do prédio que estavam a tocar para fogo, pelo que saiu imediatamente do prédio com o fato macaco vestido, com umas letras nas costas a dizer “Bombeiros”, pegou na bicicleta e desatou a pedalar pela estrada fora, aos saltos, devido à irregularidade do piso.
— Mas quem será o chouriço que está a tocar a campainha desta maneira? — Disse uma voz vinda do lado de dentro do apartamento.
A porta abriu-se e um Ah! de espanto simultâneo percorreu o corredor do andar.
— Branca de Neve — exclamou Anão número cinco.
— Anãozinho — exclamou Branca de Neve.
— Mas, tu aqui, neste sítio, não estou a perceber...
— Eu também não, pensei que era o meu príncipe novamente.
— Então... espera lá, há aqui alguma coisa que não está a funcionar bem. Tu e o teu príncipe não viveram felizes para sempre?
— Ó Anãozinho, isso foi na história, e só nas histórias infantis é que as pessoas são felizes para sempre, não é? No fundo, esses finais são sempre aquilo que toda a gente deseja, mas que a vida não nos consegue dar. Se não formos suficientemente atentos connosco, se não aproveitarmos todos os bocadinhos, nem que pareçam insignificantes, que nos fazem sentir bem connosco próprios e com o mundo, seremos, na vida real, uns infelizes para sempre. Quanto ao príncipe, nunca mais o vi.
— Nunca mais o viste!?... — disse Anãozinho, de certa forma aliviado, pois sempre sentira imensos ciúmes do príncipe. È que ainda por cima, na história original, nunca lhes foi dado qualquer hipótese de conquistar o coração de Branca de Neve. Já estava pré-destinado para o príncipe.
Faz lembrar algumas famílias modernas que ainda têm esta mentalidade de história infantil original.
— Nunca mais o vi, embora ultimamente tenha muitas saudades dele. Quando me convidaram para esta história, pensei que era para estar com ele.
— Por acaso, na história original, embora tenhamos aparentemente todos ficado muito contentes com o final, eu não. Sempre pensei que irias ficar connosco para sempre...
— Para sempre? Que horror, Anãozinho. Viver na floresta? Desculpa lá, mas não está nos meus planos ser uma espécie de porca criadeira, a cuidar de garotos farruscados, estar de manhã á noite preocupada com a lida da casa, a criar patos e galinhas e a ir à missa ao domingo na motoreta. Eu não tenho perfil para ser aldeã. Isso é lá mais com Hansel e Gretel, que têm instintos campónios muito aperfeiçoados...
— Não sei o que é preferível, se é viver na aldeia, de uma forma campónia, ou aqui, nesta espelunca, a fazer este trabalho, enfim, pouco adequado às tuas intenções de rapariga séria...
— Espero sinceramente que o meu príncipe apareça a qualquer momento — continuou Branca de Neve, ignorando completamente aquilo que o Anãozinho disse — com um bom carro, bastante dinheiro e uma situação social de fazer inveja a toda a gente. Mas agora reparo, vens muito janota, até te esqueceste da picareta...
— Hoje a picareta é outra. Vem escondida... — disse com malícia Anãozinho.
Vendo que Branca de Neve mudou rapidamente de expressão, apressou-se a tentar evitar qualquer chatice com ela — Então, mas ainda não me disseste, o que fazes aqui, nesta espelunca? O que te aconteceu para vires parar a esta “vida”? — disse, mostrando um ar bastante interessado, não fosse Branca de Neve aborrecer-se de vez com ele.
— O sonho!
— O sonho?!...
— O sonho, igual a uma história de amor, dessas histórias originais, como a Bela Adormecida, ou mesmo a minha, Branca de Neve e os Sete Anões. Tal como eu, que ando à procura de um príncipe, muitas destas mulheres que estão nesta “vida” também procuram um príncipe, que as tire rapidamente desta espelunca. Vieram atrás do sonho. Quiseram uma vida melhor, que as tirasse da choldra da família despedaçada, onde o álcool e a violência doméstica eram o pão nosso de todos os dias. Outras foram enganadas, deixaram-se seduzir por uma conversa carinhosa que desconheciam. Pudera, carinho foi coisa que nunca tiveram. Acreditaram que tinham direito a ser felizes, só que não sabiam que só é feliz quem pode, quem tem na história o papel principal. Aos poucos e poucos, com o tempo passando, ficaram sozinhas, as conversas carinhosas foram um “Ai que lhe deu”, e assim foram-se acostumando, conformadas com o destino que lhes foi traçado. É assim, passamos a vida a sonhar com príncipes e depois acabamos nesta vida.
Anãozinho estava boquiaberto com tal sensibilidade. Sentiu-se mal consigo próprio por não ter reflectido bem sobre estas coisas. Nunca tinha pensado nas mulheres que a troco de venderem sonhos, adiam eternamente o seu próprio sonho.
— Então, Branca de Neve, eu também sonhei!... Pensei que me iria sentir feliz, mas esta felicidade é efémera. Desaparece rapidamente.
— Sim Anãozinho, é verdade. Quanto a nós, não vale a pena ter ilusões. Eu continuo à procura do meu príncipe encantado, e não vou desistir disso. Aliás, a minha personagem só combina com príncipes e coisas do género. Além, de que no contrato não figuram propriamente anões. Eu tenho direitos, e não consinto ser enganada. Para isso, já bastou a palerma da bruxa, que me deu uma maçã envenenada, e eu caí que nem uma patinha.
«Anãozinho».
— Branca de Neve, tens cá alguém em casa? Pareço ouvir uma voz.
— Não, não está mais ninguém, aliás que eu saiba, não entra mais ninguém nesta história além de nós.
«Anãozinho, sou eu, o narrador».
— Ah!, és tu narrador. Então diz lá.
«Acho que está na altura de regressares a tua casa e aguardares por um novo contrato que te permita entrar noutra história. Estou confuso com tudo isto, não tinha planeado uma história assim...»
— Francamente Narrador — disse Branca de Neve — não estavas à espera que eu me pusesse a aviar anõezinhos de manhã à noite, pois não?
«Não é nada disso. A história, não sei porquê alterou-se, e agora começo a ter dificuldades em acabá-la. Acho melhor ficarmos por aqui, e pensarmos um pouco em tudo isto. Preciso de tempo para trabalhar melhor este assunto. Vou terminar esta história de forma simples, e um dia mais tarde, se julgar necessário, altero-a. É isso que vai acontecer».


Anãozinho voltou cedo. Os irmãos não o esperavam, muito menos para almoçar. Calado, não disse nada, e os irmãos também nada disseram. Depois do almoço, vestiu a sua habitual fatiota domingueira, constituída pelo seu belo fato de treino, sapatos com meia branca, e dirigiu-se à praça central da cidade, ao café habitual. Ao entrar, estranhou o olhar dos presentes, que o miravam de alto a baixo. Por momentos tremeu, a pensar que tinham descoberto a sua aventura matinal. Depois lembrou-se que não era costume ir de tarde, e daí a assombração do pessoal. O dono do café ainda lhe dirigiu umas palavras, no meio da confusão em que o café se tornava nas tardes de domingo:
— Então Anãozinho, aqui a esta hora? De manhã houve gazeta?
— Não pude vir. Fui atrás do sonho, mas como todos os sonhos, este também só fazia sentido dentro da nossa cabeça.
O dono do café ficou de olhos esbugalhados a olhar para o Anãozinho. Ao tirar um café da máquina, ficou a pensar com os seus botões: será que o café tem alguma droga que avarie de vez em quando a cabeça do Anãozinho?

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lobo Mau nos tempos modernos

Lobo Mau deambulava pelos subúrbios da cidade. Fortemente industrializada, o seu tom cinzento transmitia a todos os seus habitantes um aspecto deprimente. Uma espessa neblina de fumo e um cheiro nauseabundo ornamentavam o já triste e decadente ambiente. Lobo Mau dirigia-se para a estação de metro, cumprindo assim um ritual diário. Passava pelo rio, de cor escura, com elementos cilíndricos de cor acastanhada boiando livremente, ouvia os aviões com o seu barulho ensurdecedor a caminho do aeroporto e ao longe ouvia o silvo de um comboio de transporte de mercadorias. Nada de novo. Mais um dia de trabalho na fábrica de parafusos e porcas ( de metal, bem entendido.); mais um dia a fazer a mesma coisa; mais um dia de viagem de casa para a fábrica e da fábrica para casa. O mesmo rame-rame do costume.
— Que raio de vida! — suspirou Lobo Mau, olhando distraídamente para o anúncio de uma conhecida marca de detergentes que dizia que conseguia lavar mais branco que o próprio branco.
— Pode lá ser. — Reflectiu Lobo Mau.
A paradisíaca floresta, onde antigamente vivia Lobo Mau, era de uma beleza rara, cheia de árvores frondosas, caminhos poeirentos e casinhotas de palha, madeira e tijolo, sendo costume nesta última o Lobo Mau queimar o traseiro na lareira, subir em formato de foguetão pela chaminé e apagar as nádegas incendiadas em solavancos mais ou menos certos no caminho poeirento. Nestas casinhotas viviam os restantes elementos da história original, mais conhecidos pelos três porquinhos.
Esta floresta foi transformada em zona industrial de matérias químicas, com aterro sanitário incluído que por acaso nunca funcionou, o que parece normal em situações do género. Para completar melhor o quadro, foram lá colocadas duas cimenteiras a co-incinerar resíduos tóxicos, sem as respectivas mangas de protecção, o que também começa a ser normal.
No dia da sua inauguração, Lobo Mau estranhamente ficou feliz. Pelo menos tinha-se livrado dos lenhadores, que muitas dores de cabeça lhe tinham dado, sobretudo na história do Capuchinho Vermelho.
Porém, rapidamente chegou à conclusão de que mais valia levar chumbo dos lenhadores e ter vida saudável, do que viver nesta miséria decadente, onde se tem de cumprir horários, trabalhar para morrer reformado, baixos salários, as crianças ao abandono afectivo e as famílias a conhecerem-se vagamente á noite.
Efectivamente, o principezinho de Saint-Exupéry tem razão quando diz que a perfeição não existe. Ou seria a raposa, que ficou alegre quando soube que não havia caçadores no planeta do principezinho, e ao mesmo tempo triste quando também soube que não havia galinhas?
— Brrr!..., que trampa de vida. — pensou Lobo Mau. — Que saudades que eu já tenho da minha alegre floresta, tão bonita e tão limpinha.
De repente veio-lhe à memória os seus amigos porquinhos. Como que a fazer lembrar os tempos antigos, começou rapidamente a babar-se.
— Que bela chicha. – Suspirou Lobo Mau.
Resolveu mudar de percurso e meter-se por uma rua estreita, ladeada por suiniculturas feitas de acordo com as melhores técnicas de produção animal. Procurou o número 7057, onde viviam os seus amigos porquinhos, de cujos nomes ainda se recordava muito bem. Eram o Basófilo, o Triglícerideo e o Colesterol. Bateu à porta. Nada. Um silêncio como resposta. Bateu novamente. Sentiu passos. A porta abriu-se. A cara de espanto de Basófilo surpreendeu Lobo Mau. Antigamente era de terror. Como os tempos mudam.
— Lobo Mau?!...
— Sim, sou eu. Tenho saudades vossas e resolvi visitar-vos.
— Bom, como esta não é a história original podes passar para dentro. Mais a mais, já estamos todos mais civilizados.
Lobo Mau entrou e encontrou os manos porquinhos a fazer o jantar. Sentou-se e calmamente começou a falar.
— Sabem, de repente deu-me umas saudades do antigamente, em que corria desalmadamente atrás de vocês, embora o sacana do narrador nunca me deixasse apanhar-vos. Apesar de tudo, foram os melhores tempos da minha vida, de maneira que vinha pedir autorização para vos comer e tentar relembrar os velhos tempos. Que acham?
Os porquinhos ficaram muito sérios, a olhar para o Lobo Mau.
— Este gajo está doido, esqueceu-se da deixa. Será que não leu o guião? – Questionaram-se interiormente os três porquinhos.
Basófilo, mais corajoso, depois de olhar demoradamente o Lobo Mau, e decidido a cumprir o plano da história, foi o primeiro a reagir:
— Lobo Mau, que olhos tão grandes e amarelos tu tens. Isso é figadeira. Tens uma esteatose hepática. A carne de porco vai fazer-te muito mal.
Triglícerideo olhou também para Lobo Mau e acrescentou:
— Lobo Mau, que dentes tão grandes, podres e cheios de cárie. Isso é do açúcar e do tabaco. Tens de alimentar-te de uma forma saudável. A carne de porco vai fazer-te muito mal.
Colesterol, assim que o irmão acabou de falar, sem perder tempo, disse-lhe:
— Lobo Mau, mas que mãos tão grandes e tão atrofiadas. Que articulações tão inchadas. Isso é do ácido úrico , e se comeres carne de porco, vais ficar muito pior, com muitas dores e sem conseguires andar.
— Tens de FAZER UMA DIETA, Lobo Mau. – Gritaram ao mesmo tempo os três porquinhos.— Janta connosco. Como sabes, somos vegetarianos e a nossa comidinha vai fazer-te muito bem.
E rapidamente puseram-lhe à frente uma tigela de sopa, que era feita de cebola, aipo, pimentos e tomates, tudo triturado e sem sal.
— Mas isto é lavagem.- Disse angustiado Lobo Mau.
— Outra vez? – Pensou Basófilo.
— Então este gajo não sabe o que comem os porcos? — Reflectiu Triglícerideo.
Não querem lá ver que o narrador não lhe deu o guião certo? – Ponderou Colesterol.
Lobo Mau estava alucinado. A réstia de esperança desvaneceu-se completamente. A possibilidade de voltar à felicidade da história original estava por terra. Nisto, tocou o telemóvel. Lobo Mau atendeu e começou logo a abanar a cabeça e a dizer “Sim, já vou querida”, repetidas vezes. Era a sua mulher, Loba Boazona, a reclamar pelo facto de ele se encontrar atrasado. Afinal, havia tanta coisa por fazer; ajudar os lobitos nos trabalhos da escola; ajudar a fazer o jantar; lavar a louça; limpá-la; arrumar a cozinha...
O desespero aumentou mais em Lobo Mau. Mais uma vez não tinha conseguido atingir o seu objectivo, tal como na história original. Coitado do Lobo Mau.
— Narrador, Narrador, estás a ouvir-me?
«Como? Mas, quem me está a interromper? Estou a ouvir o meu nome...»
— Narrador, Narrador, estás a ouvir-me?
«Mas que é que me chama?»
— Sou eu, o Lobo Mau.
«Lobo Mau? Mas não é suposto tu falares comigo.»
— Eu sei, mas acontece que estou farto desta história...
«Ouve lá, mas quem decide a história sou eu, não és tu. Tu tens de fazer aquilo que eu determino, senão posso substituir-te no elenco, e olha que personagens não faltam: o Capuchinho Vermelho, o Gato das Botas, a Branca de Neve, os Sete Anões, sei lá mais o quê...»
— Eu sei, e sabes bem que preciso deste cachet, mas não consigo adaptar-me a este ambiente tétrico. Esta história da dieta não estava nos meus planos. Isto é ridículo para um Lobo...
«Ouve lá, Lobo Mau, quem é que te disse que esta história da dieta não estava nos planos? Desde quando é que fazer uma história nos tempos de hoje não implica falar de dieta? Há alguém hoje que não precise de uma dieta? E as criancinhas, cujos papás e mamãs vão ler esta história, não estão todas obesas de comerem desenfreadamente pizzas e hambúrgueres, devidamente acompanhadas com aquela pestilenta bebida chamada Coca-Cola? Portanto, se queres fazer parte da história, tens de fazer o que eu escrevo.»
— Demora muito ou faz serão? – gritaram a uma só voz Basófilo, Triglícerideo e Colesterol.— Ainda hoje temos de participar noutro conto e não há tempo a perder com carreiras artísticas frustradas como a do Lobo Mau.
«Pouco barulho, faz favor, que assim ninguém se entende. Aqui quem escreve sou eu e portanto como eu redigir é como fica.»
— Narrador, sou eu outra vez...
«Lobo mau, começo a não ter paciência para ti...»
— Por favor, devolve-me à história original. É melhor para mim...
«Olha, realmente é melhor, começo a estar farto das tuas pieguices. Portanto este conto já só tem uma solução. Sabes qual é?»
— Não...
«FIM.»

Curral dos atrasados mentais

Grande azáfama efervescente animava os estúdios da TDI (Televisão da Ignorância) naquela tarde chuvosa, cuja monotonia apenas era quebrada com uns relâmpagos aqui e acolá. Dava-se tudo por tudo para estrear dentro do prazo o mais recente projecto televisivo, que seria para todos os efeitos, a última tentativa para tirar a TDI do fosso das audiências em que se encontrava nos últimos 10 anos. Como que caído do céu aos trambolhões, apareceu um investidor muito forte, disposto a patrocinar um programa televisivo, colocando apenas uma condição: o programa tinha de ser diferente de todos os outros existentes e tinha de liderar destacadamente as audiências. Bom, convenhamos que já não é nada pouco. Apesar desta exigência, não restava outra alternativa à TDI senão agarrar com unhas e dentes esta oportunidade milagrosa.
A primeira dificuldade foi a equipa de produção e o patrocinador conseguirem entender-se quanto ao nome a dar ao programa. Após milhares de sugestões, noites sem dormir, discussões acaloradas envolvendo os aspectos sociológicos, antropológicos, filosóficos e sei lá mais o quê acabado em “icos”, chegou-se finalmente a um consenso: o nome do programa seria O CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS.
Depois de cem e uma noites sem dormir, de dezenas de milhares de sugestões, de múltiplas discussões acaloradas envolvendo os aspectos sociológicos, antropológicos, filosóficos e sei lá mais o quê acabado em “icos”, chegou-se finalmente a um consenso quanto à estrutura do programa: são convidadas diversas personagens que virão ao programa colocar os seus dramas de vida, a sua desgraça pessoal, mas que tem de ter uma pequena particularidade: envolver terceiros, que o programa à socapa irá contratar para participarem no programa, e quando os principais intervenientes estiverem no auge a dizer mal dos “amiguinhos”, eles entrarão em cena, provocando reacções que serão as mais estapafúrdias possíveis. Isso provocará concerteza uma enorme confusão no programa, e como o que os telespectadores apreciam são confusões televisivas, a liderança de audiências estaria garantida.
Faltava apenas decidir uma última questão: quem seria a personagem com capacidade e garra suficiente para apresentar e liderar este projecto. Após centenas de milhares de sugestões, mil e uma noites sem dormir, triplas discussões acaloradas envolvendo os aspectos sociológicos, antropológicos, filosóficos e sei lá mais o quê acabado em “icos”, chegou-se finalmente ao terceiro consenso: a apresentação ficaria a cargo da conhecida apresentadora de televisão Xica Fala Barato. Embora fosse funcionária de um canal da concorrência, Xica Fala Barato confrontada com a proposta milionária da TDI, não foi de modas e transferiu-se de armas e bagagens para este canal televisivo, afim de dar o rosto ao CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, e à sua conta bancária uns zeros a mais do que era costume.
Finalmente chegou o dia anunciado. Os nervos estavam tanto à flor da pele, em toda a equipa, que não foi fácil acalmar o pessoal. Foi mesmo necessário substituir um operador de câmara, pois tremia tanto que a imagem transmitida parecia que sofria de tosse convulsa crónica.
Após a publicidade do principal e único patrocinador, cujo actividade comercial é a venda de uma pomada para os calos, eis que o programa entra no ar, anunciando no seu spot inicial que “se não vê baba e ranho por aí, então ligue-se à TDI”. Após este spot aparece a figura de Xica Fala Barato, enchendo todo o écran do televisor, com a sua habitual voz estridente:
— Boa noite, caros telespectadores, bem vindos ao maior programa de televisão alguma vez feito no planeta terra, que é como quem diz, na nossa pequena aldeia global. A TDI, o maior canal de televisão alguma vez inventado, teve a coragem, a destreza, a delicadeza, a genialidade, a inteligência, o talento, a habilidade, a capacidade e sobretudo o patrocínio da grandiosa marca de pomada para os calos “Arre Chiça que Dói”, esse verdadeiro milagre da medicina caseira para acabar de vez, digo eu, com essa praga do corpo que nos faz soltar uns “ais” e que nos deformam os nossos ricos pézinhos, que são os calos. Pois dizia eu, que com essa pomada milagrosa, os calos poderão não desaparecer, mas mentalmente tornamo-nos interiormente mais fortes para aguentar, rindo e distribuindo felicidade, colocando os referidos calos num plano secundário. Pois hoje, aqui, neste mesmo estúdio, na primeira edição do CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, vamos ter na primeira parte uma grande surpresa, ó larilas que vamos ter, que se não tivermos bem sentados ainda caímos de cu atarantados. E não vamos perder mais tempo. Directamente de um dos mais belos contos infantis que alguma vez foram escritos, e em exclusividade para o melhor programa de televisão a nível galáctico e planetário, que é o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, senhoras e senhores, meninos e meninas, aqui está connosco para partilhar as suas desgraças, a brilhante, a beleza em pessoa, a sensível Bela Adormecida, felizmente bem acordada.
E nisto ouvem-se bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde ainda eram perceptíveis os gritos de uma claque que dizia assim: “Ó Presidente Abécula, vai pró cará... caráquistão”.
Bela Adormecida, no seu ar jovial e sereno, entra no palco e vai cumprimentar Xica Fala Barato. De imediato, sentam-se as duas num enorme sofá vermelho, e após troca de risinhos idiotas e de executarem por duas vezes o andólitá que Xica Fala Barato tinha aprendido na escola primária, perdão, do ensino primário, perdão, no primeiro ano do primeiro ciclo de escolaridade, lá deram inicio à entrevista. Começou primeiro Xica Fala Barato:
— Belinha Adormecida, que linda que tu estás, minha querida. Que lindos olhos tu tens, que lindas orelhas que tu tens, que lindo cabelo que tu tens, que linda boca que tu tens...
— Querida Xica Fala Barato, por acaso não me estás a confundir com o Capuchinho Vermelho, pois não?
— Claro que não, minha querida, estava só a brincar contigo. Bom, mas vamos ao que interessa, que os nossos telespectadores estão mortinhos para saber o que te trás por cá hoje.
— Pois em primeiro lugar queria agradecer a oportunidade que a TDI me dá para poder vir de novo á ribalta do socialmente importante. Em segundo lugar, venho a este programa, aliás com todo o gosto, porque acho que está na altura de se fazer justiça à minha pessoa...
— Justiça à tua pessoa, Belinha? Será que percebi bem? Mas tu sentes-te injustiçada, minha querida? Quem é que é o responsável por tamanha monstruosidade?
— Não sei se haverá alguém especificamente responsável, por isso é que venho a este programa, para ver se me ajudam a descobrir. Antes de mais, queria também dizer-vos que outro motivo da minha vinda aqui prende-se com o facto de eu ter decidido lutar com todas as minhas forças contra a sociedade cinzenta onde querem que eu viva e da qual estou farta...
— Sociedade cinzenta? Será que eu ouvi bem? Então a sociedade não é às cores, querida? Os eléctricos não são amarelos? A relva dos estádios não é verde? Os semáforos têm três cores, os centros comerciais têm luzes de todas as cores e por todo o lado...
— Não se trata da sociedade de consumo, minha querida Xica Fala Barato. Refiro-me à sociedade dos valores e da forma como nós, as personagens femininas, somos tratadas, ou melhor mal tratadas.
— Minha querida, cada vez percebo menos. Ora vamos lá desembrulhar essa embrulhada
— Muito bem. Como todos sabem eu sou uma personagem que simbolizo a beleza feminina, a doçura, no fundo a mulher submissa. Tendo sido alvo de uma maldição, tive de esperar cem anos por um Príncipe Encantado para voltar a viver. É este o primeiro problema. A submissão a um Príncipe Encantado. Muitas de nós perdemos grandes oportunidades na vida de sermos verdadeiramente felizes, porque passamos o tempo à espera dos Príncipes Encantados da vida. Eu passei, como disse cem anos à espera. O que ganhei? Perdi todos os meus amigos e amigas, deixei de viver momentos importantes da minha vida, para nada. E como se não bastasse, ainda tive de assumir um papel secundário na relação. Porque é que a mulher tem de ser sempre sofredora em relação ao homem nas histórias, quer sejam de ficção, quer sejam da vida real? Porque é que não existem princesas encantadas e homens submissos, que dormem cem anos à espera de serem libertados da maldição do sono da vida? Este é o segundo problema. A sociedade vive segundo critérios patriarcais e não matriarcais. Por isso existe uma enorme falta de sensibilidade para a vida, para a beleza, para a harmonia. Vivemos segundo padrões de agressividade, de intolerância, de ganância e de posse, tudo valores masculinos. É esta a sociedade cinzenta a que me refiro.
— Muito bem, Bela Adormecida, até estou embasbacada com tamanha cultura geral. Mas, minha querida, queria pegar num ponto do seu excelente discurso, que julgo que é o mais importante, que é o facto de acusar gravemente o Príncipe Encantado. E isso sim, é o facto mais relevante do seu discurso. O rapaz demorou cem anos para a libertar da maldição. O rapaz depois não correspondeu ao amor da Bela Adormecida. Naturalmente a vossa relação passa neste momento por uma performance de ataque de nervos, não é verdade?
— Se quer que lhe diga, nunca mais o vi, para mim é indiferente a sua existência...
— Não diga tamanho disparate, Bela, é claro que a vossa relação é o mais importante nesta noite, e nós, no sentido de ajudar, vamos tentar explorar ao máximo todos os factores que levaram à sua degradação. E para isso vamos já chamar a este palco, para tirar a limpo toda esta situação, nem mais nem menos que o próprio Príncipe Encantado. Palmas para ele, senhoras e senhores.
— Eu não acredito...— balbuciou Bela Adormecida.
Mais uma vez se ouvem bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde ainda se continuavam a ouvir, talvez agora com mais clareza, os gritos da mesma claque, embora o texto fosse ligeiramente diferente, mais direccionado para o senhor árbitro: “Ó Caixa d’óculos, abre os olhos mula, vai pró cará... caráquistão”.
Nisto, entra o Príncipe Encantado, com a sua pose magistral, que deixou encantada e talvez um pouco mais do que isso a Xica Fala Barato, que de repente se lembrou das palavras da Bela Adormecida e chegou à conclusão de que a ganância da carreira lhe tinha tirado todas as possibilidades de ter uma relação afectiva estável. Como que por milagre sentiu saudades de um corpo masculino enroscado nos seus lençóis. Sem perder tempo nem postura, Xica Fala Barato recebeu o delicado rapaz:
— Caro Príncipe Encantado, sejas bem vindo ao CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, o melhor “pó talco show” do mundo e arredores. Nem sabes quanto te têm aqui triturado pelas costas, nomeadamente a tua antiga, ou sei lá o quê, camarada de ofícios, a Bela Adormecida...
— Oh, a Bela Adormecida está aqui? — falou o Príncipe Encantado. — E está a dormir? Então tenho de a beijar para que ela acorde do sono maldito...
A Bela Adormecida interrompeu-o logo:
— Sono maldito, uma ova. A única coisa maldita foi tu seres colocado na treta da minha história. Já agora deves estar à espera que te encha a casa de filhos, te lave a roupa, cosa as meias, e te sirva quando te bem apetece, para sermos felizes para sempre, não é? Então é melhor dares corda aos sapatos e pôr o cavalo à chuva, que eu não estou nada interessada em te aturar.
— Oh Bela Adormecida — respondeu o Príncipe Encantado — nunca me passou tal coisa pela cabeça. Filhos são caros como tudo, e o resto conto comprar a prestações, nomeadamente máquinas de lavar e sei lá mais o quê...
— Podes comprar na mesma, desde que vivas sozinho e não me incomodes.
— Calma, calma, calma — interviu Xica Fala Barato — que esta conversa está super azeda, ou seja está o máximo para o perfil deste programa. Então Príncipe Encantado, explique-nos lá uma coisa, porque razão demorou cem anos a libertar a Belinha do sono maldito?
— Bem, eu para ser franco nem faço ideia nenhuma sobre isso. O problema foi do autor da história, que não sei porque carga de água se lembrou desse disparate. É óbvio que não foi uma ideia sensata, porque eu sou um rapaz novo e não me posso sentir feliz ao pé de uma velha com mais de cem anos, ultrapassada nas ideias e na forma de estar na vida...
— O que tu queres sei eu muito bem — respondeu Bela Adormecida — mas só de pensar nisso dá-me logo vómitos. Ainda por cima a cheirar a cavalo. Irra.
— Bom, será que vamos ter uma reconciliação em directo? — repenicou Xica Fala Barato — Isso era o máximo. Vamos fazer um enorme esforço, Príncipe e Bela. Por favor, dêem as mãos e procurem ultrapassar todos estes mal entendidos.
Bela Adormecida e o Príncipe ficaram um pouco entreolhados com esta surpresa. Mais uma vez se ouvem bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde se continuavam a ouvir, agora ainda com mais clareza, os gritos da mesma claque, embora o texto fosse ligeiramente diferente, mais direccionado para o senhor treinador: “Vai dar banho ao cão, ou melhor, vai pró cará... caráquistão”. Este som de palmas estava misturado com um outro, de talheres a bater em pratos e garrafas, próprio dos casamentos quando se quer que o noivo beije a noiva. Bela e o Príncipe ficaram um pouco emocionados com todos estes decíbeis e abraçaram-se.
— Promete-me que tomas banho todos os dias, — dizia Bela para o Príncipe — que fazes a barba todos os dias e cortas as unhas dos pés, meu amor.
— Prometo querida, — disse o Príncipe — e tu promete-me que vais usar uma lingerie mais moderna, lavas os dentes quando beberes leite e antes de ires para a cama. Promete-me também que utilizas perfumes pouco enjoativos e se fores trabalhar para o supermercado do vizinho não fazes horas extraordinárias.
— Prometo, querido — respondeu Bela Adormecida.
— E aí está, caros telespectadores, como a televisão faz milagres e promove o amor em directo. Só mesmo no CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, o seu programa predilecto. Mas ainda temos mais. Vou já pedir a opinião ao nosso ilustre comentador permanente, Dr. Libório Paranóico, psiquiatra de profissão, embora praticamente nenhum doente o procure, que tem passado o tempo a bebericar uns uísques de malte, devido ao estado de ansiedade que este programa lhe provoca. Shôr Dôtor Libório Paranóico, a sua opinião por favor.
— Pois eu entendo que o facto mais relevante deste brilhante encontro são os cem anos de espera, que podem ser vistos por dois prismas. Senão vejamos. Primeiro prisma: se multiplicarmos dez anos pelo número dez obtemos exactamente cem anos, o que é verdadeiramente extraordinário. Mas também, e este é o segundo prisma, se multiplicarmos um ano pelo número cem, obtemos novamente cem anos, o que não deixa de ser mais uma vez verdadeiramente extraordinário. É exactamente esta riqueza de prismas que eu considero importantíssima nesta história, e pela qual acho que vale a pena pensar nisto. Parabéns aos intervenientes e ao brilhante programa de grande utilidade cultural que é o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS. Já agora passavam-me outra garrafita, que esta já acabou?
— Muito bem, Dr. Libório Paranóico, pela sua excelente prestação. — disse Xica Fala Barato. — Vamos agora ouvir a opinião do público, hoje representado pelo senhor João Lambisgóia, trolha de profissão quando a tinha, de momento dedica-se à arte dos sem-abrigo pelas ruas da cidade, e pela senhora Arlete Oxigenada, prostituta nas horas livres e nas outras também, que se define a si própria como “especialista em levar nos cornos a qualquer hora do dia ou da noite, de qualquer forma e feitio”. Sr Lambisgóia, faça o favor de dar a sua opinião.
— Bom, eu cá não sei bem o que dizer, né? Só sei que me prometeram vinte euros se me sentasse aqui até ao fim. Mas eu estou do lado da cachopa, embora não tenha percebido nada disto até agora. Mas prontos, a cachopa é jeitosa, tomara eu uma destas duas vezes por ano, já me dava por feliz, e eu estou sempre ao lado das cachopas jeitosas...
— Muito obrigado, senhor Lambisgóia, pela sua participação. — interrompeu com maus modos Xica Fala Barato — Dona Arlete Oxigenada, faça favor de dar a sua opinião.
— Bem, eu estou aqui como o Lambisgóia, também me prometeram os vinte euros, e espero que cumpram, que eu já estou farta de dar o corpo ao manifesto e no fim, em vez do graveto, levo é dois murros no focinho que até vejo estrelas. Já não era a primeira vez. Mas também vos aviso que faço aqui uma peixeirada daquelas...
— Dona Arlete — interrompeu Xica Fala Barato — muito obrigada pela participação. E prontos, estamos no fim da primeira parte, vamos para um curto intervalo, voltamos de seguida para a segunda parte, recheada de outra boa surpresa. Até já.
E enquanto as luzes baixavam de intensidade e todos aproveitavam para descontrair um pouco, Bela e Príncipe continuavam agarrados um ao outro fazendo promessas mútuas.
—...prometes que cortas os pêlos do nariz e das orelhas, não usas a unha comprida no dedo mindinho e lavas o rabinho sempre que tiveres aquela necessidade...
— Sim querida, e tu prometes que cortas os pêlos debaixo das axilas e fazes a depilação, não só das pernas, mas também do bigode?
— Sim querido...
E assim ficaram, eternamente felizes, agarradinhos um ao outro. Em princípio foram felizes para sempre.

Momento de intervalo. Passam os reclames publicitários, e eis que se apronta toda a equipa para recomeçar o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS.
Aqui vai a segunda parte. E mais uma vez a voz estridente de Xica Fala Barato:
— Boa noite, caros telespectadores, bem vindos à segunda parte do maior programa de televisão alguma vez feito no planeta terra, que é como quem diz, na nossa pequena aldeia global. A TDI, o maior canal de televisão alguma vez inventado, teve a coragem, a destreza, a delicadeza, a genialidade, a inteligência, o talento, a habilidade, a capacidade e sobretudo o patrocínio da grandiosa marca de pomada para os calos “Arre Chiça que Dói”, esse verdadeiro milagre da medicina caseira para acabar de vez, digo eu, com essa praga do corpo que nos faz soltar uns “ais” e que nos deformam os nossos ricos pézinhos, que são os calos. Pois dizia eu, que com essa pomada milagrosa, os calos poderão não desaparecer, mas mentalmente tornamo-nos interiormente mais fortes para aguentar, rindo e distribuindo felicidade, colocando os referidos calos num plano secundário. Pois dizia eu, que com essa pomada milagrosa, os calos poderão não desaparecer, mas mentalmente tornamo-nos interiormente mais fortes para aguentar, rindo e distribuindo felicidade, colocando os referidos calos num plano secundário. Pois hoje, aqui, neste mesmo estúdio, na primeira edição do CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, já tivemos na primeira parte uma grande surpresa, ó larilas sim senhor, que se não tivéssemos bem sentados tínhamos caído de cu atarantados. Um casal desavindo uniu-se de novo nos laços do amor. Que belo, sem dúvida. Já agora, também tivemos de substituir o público presente, devido ao facto de não termos trocos em caixa suficientes para os calar, e porque o produtor em vez de soletrar dois euros, soletrou vinte. Bom, assuntos de pouca monta. Adiante. E não vamos perder mais tempo. Directamente de não sei de onde, e em exclusividade para o melhor programa de televisão a nível galáctico e planetário, que é o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, senhoras e senhores, meninos e meninas, aqui está connosco para partilhar as suas desgraças, o brilhante, a brutidade em pessoa, o grande pequeno Popeie, esse pestilento marinheiro, sempre a cheirar a peixe podre e com bafo constante de bagaço.
Mais uma vez se ouvem bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde se continuavam a ouvir, agora ainda com mais clareza, repito, com muito mais clareza sim senhor, os gritos da mesma claque, embora o texto fosse ligeiramente diferente, mais direccionado para a equipa de televisão que estava concerteza a transmitir o desafio: “Enfia a máquina no sítio que tu bem sabes, ou melhor, vai pró cará... caráquistão”.
Popeie, no seu ar de carapau salgado, entra no palco e vai cumprimentar Xica Fala Barato. De imediato, sentam-se os dois no enorme sofá vermelho, e após troca de risinhos idiotas, Xica Fala Barato tenta ensinar o andólitá a Popeie, que fica a olhar com os olhos esbugalhados para os gestos dela representando um jogo, que Xica Fala Barato tinha aprendido na escola primária, perdão, do ensino primário, perdão, no primeiro ano do primeiro ciclo de escolaridade.
Popeie fica assim no estúdio meio atarantado com o barulho das luzes e afins, pois para quem está habituado aos ambientes de calmaria do mar, um cenário destes desorienta qualquer valentão.
— Muito boa noite Shôr Popeie, bem vindo ao grande programa O CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS, — falou Xica Fala Barato, depois de desistir do andólitá. — Então quer fazer-nos o favor de partilhar connosco toda a tragédia que se abateu sobre si nos últimos tempos?
— Pois sim senhor Sôdona Xica. — balbuciou Popeie, ainda meio inibido com toda esta situação — Como sabe a minha vida tem sido sempre passada no mar, em navios velhos e bafientos, a ter de comer espinafres enlatados e a mandar umas arrochadas em latagões desparafusados...
— Pois isso já nós sabemos Shôr Popeie — cortou Xica — mas não é por isso que está aqui, não é verdade? No entanto, tenho aqui uma dúvida. Se sempre foi essa a sua vida, porque é que agora decidiu mudar de estilo, mudar de ambiente, mudar de história, enfim, dar uma volta de cento e oitenta graus na sua personagem?
— Pois ó Sôdona Xica, isso é muito fácil de entender. A Sôdona Xica gosta muito de um bife com batatas fritas e ovo a cavalo? — questionou Popeie.
— Adoro, adoro, adoro...— disse cheia de prazer Xica Fala Barato.
— Pois muito bem Sôdona Xica — continuou Popeie — imagine que lhe davam todos os dias, a todas as refeições, bife com batatas fritas com ovo a cavalo? Enjoava, não é verdade?
— Bem, realmente, não sei, talvez sim talvez não, mas o certo mesmo era de facto enjoar e ficar farta — afirmou Xica.
— Ora, tá a ver Sôdona Xica, foi o que me aconteceu. — disse Popeie — Enjoei e fiquei farto.
— E então, o que fez? É aí que reside toda a tragédia da sua vida, não é verdade? — perguntou Xica.
— Pois é verdade, Sôdona Xica. — balbuciou Popeie — Numa tentativa de mudança, virei-me para o Rodosférico profissional. E aí começaram os meus problemas. Fiz um contrato com um clube importante, só que até agora ainda não me pagaram um chavo, além de terem dispensado os meus serviços. É uma situação injusta, acho que têm de cumprir o que acordaram comigo, e para além do mais, com isto tudo fiquei sem lugar na minha história. Estou portanto à beira da falência na banda desenhada e sem vislumbrar soluções. É por isso que vim aqui, para denunciar esta situação e exigir que me sejam pagos todos os meus direitos.
— Muito bem, Shôr Popeie. Mas quem é que o Shôr acha que é responsável por toda esta situação que lhe foi criada?
— Pois muito bem, os grandes culpados são: em primeiro lugar o presidente do clube ACI, e em segundo lugar o presidente da Liga do Rodosférico, que tutela toda a actividade desportiva e que permite toda esta palhaçada.
— Pois Shôr Popeie, tudo isso é muito grave, daí estar em directo no CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS. Temos de deslindar por completo o seu caso, por isso convidámos a estar presente o presidente do seu clube e o presidente da Liga do Rodosférico. Senhoras e senhores, meninos e meninas, o Dr. Analfa Beto e o Sr. Melga Santos, respectivamente presidente da Liga e presidente da ACI.
Mais uma vez se ouvem bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde se continuavam a ouvir, agora de forma completamente nítida, os gritos da mesma claque, embora o texto fosse ligeiramente diferente, mais direccionado para o presidente do clube, que estava com medo de sair do estádio: “Dá o lugar a outro, trambolho, ou melhor, vai pró cará... caráquistão”.
Dr. Analfa Beto e Sr. Melga Santos entraram, dirigiram-se a Xica Fala Barato, cumprimentaram-na e sentaram-se também no grande sofá vermelho.
— Em primeiro lugar, boa noite aos senhores, bem vindos ao CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS. — falou Xica.— Começo por si, Sr. Melga Santos. O que quer dizer ACI?
— ACI é a sigla pela qual é chamada a nossa associação desportiva. — falou prontamente Melga Santos. — ACI quer dizer Associação dos Corruptos Independentes.
— E a ACI costuma tratar assim tão mal os seus atletas, como acontece agora com o vosso jogador Popeie? — questionou Xica.
— Nem nada que se pareça, Dona Xica. — respondeu de imediato Melga Santos — O caso do Sr Popeie é um caso fora do normal, um caso em que foi necessário tomar medidas drásticas para salvar da banca rota a nossa prestigiada associação.
— Como, Sr. Melga Santos? — questionou Xica — Mas isso é um caso deveras intrigante, que naturalmente faz aumentar a popularidade deste programa. Explique-nos melhor toda essa situação.
— Concerteza. — disse Melga Santos — O jogador referenciado pela senhora D. Xica foi contratado no âmbito de um projecto desportivo, por mim liderado, cujo objectivo era liderar o campeonato nacional e ganhar a grandiosa Taça dos Empreiteiros. Foi-nos dito que era um personagem com muita força, não só física mas também mental, e que aguentava dez jogos seguidos sem ser substituído.
— Ah, então sempre contrataram aqui o Popeie — aproveitou Xica para tentar tirar proveito desta situação. — E agora despediram-no sem mais nem menos, e o rapaz saiu com uma mão à frente e outra atrás.
— Nada disso, D. Xica. — atalhou Melga Santos — O que acontece é que num contrato existem diversas obrigações para ambas as partes, e o que aconteceu é que o Sr Popeie não cumpriu algumas de demasiada importância...
— O quê, Sr Melga Santos? — questionou Xica — Está a dizer-nos que agora a culpa é toda do rapaz? Ora troque lá isso tudo por miúdos.
— Foi o que fizemos. — rematou Melga Santos — Com o dinheiro que poupámos com esse senhor, investimos logo em miúdos, para serem devidamente formados no clube e assim o projecto tornou-se um projecto de médio prazo e...
— Não é nada disso que eu quero saber — vociferou Xica — não é desses miúdos, o que eu quero é que explique melhor essa intriga criada sobre o facto de o Sr Popeie não ter cumprido o contrato. Isso é que eu quero saber, está bem? Fiz-me entender? Ou é preciso fazer um desenho?
— Concerteza que sim — disse Melga Santos — e se não me interromper vou já directo ao assunto. Em primeiro lugar, o jogador em referência tinha um problema grave: cada vez que rematava, a bola ia parar a cinquenta quilómetros de distância. Se tivermos em conta que em cada treino o jogador rematava em média cerca de trezentas e oitenta e três vezes, fora os jogos ao domingo à tarde, significava que perdíamos o mesmo número de bolas por treino, o que como deve imaginar representava um prejuízo incomportável para a nossa associação.
— Trezentas e oitenta e... — balbuciou Xica.
— ...e três, D. Xica — continuou Melga Santos — mas o pior não era isso. O pior é que ele rematava sempre para o mesmo lado, de maneira que as bolas iam todas parar ao mesmo sítio, por coincidência a uma aldeia chamada Aldeia do Desespero, de forma que a aldeia começou a ficar assustada, porque, nomeadamente ao domingo à tarde, era bombardeada com uma chuveirada de bolas que metia respeito a qualquer tempestade de granizo. A aldeia chegou ao ponto de organizar uma procissão a pedir a protecção divina contra os meteoritos insufláveis que teimavam em cair em toda a aldeia, em especial à hora da missa e das novenas. Quando descobriu a verdade, rapidamente deixou a crença divina para passar à crença terrena, e vai daí contratou um bom advogado. Fomos condenados numa exorbitância, tendo de vender metade da equipa para não irmos de vez à falência.
— Mas isto é espantástico — disse Xica, entusiasmada com a ideia de uma aldeia ser bombardeada por um tufão de bolas de futebol — Nunca tinha pensado em semelhante coisa. Vejam senhores telespectadores como é possível tirar uma aldeia inteira da monotonia do dia-a-dia, criar espirito aventureiro, e sei lá mais o quê. Penso que temos de contratar o Sr. Popeie para animar este país inteiro, através do CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS. Bom, mas continue Sr. Melga Santos, continue que esta conversa está a ser muito interessante.
— Bom, mas o que deveras contribui para o despedimento com justa causa — continuou Melga Santos — foi outra situação. Depois de termos insistido para que rematasse apenas para a baliza, após imensas tentativas frustradas, um dia, em pleno jogo do campeonato do Rodosférico, esse jogador conseguiu rematar em direcção à baliza. O problema é que foi à figura do guarda-redes, que tentou segurar a bola. O resultado foi que o guarda-redes, agarrado á bola, acabou por furar a rede da baliza e desapareceu da nossa vista. Mais tarde viemos a saber que só parou num décimo segundo andar, num prédio na cidade mais próxima, que dista uns vinte quilómetros, tendo acertado em cheio numa velha e num periquito. O periquito teve morte imediata e a velha este internada, em coma profundo, durante três meses. Quando recuperou, passou a comportar-se de um modo estranho. Pensa que tem vinte anos, que é artista famosa de cinema, e começou a andar desesperadamente atrás do vizinho do segundo andar, que tem precisamente vinte anos e trabalha numa taberna local, a quem chama my love o tempo inteiro. Não lhe vou falar quanto é que esta situação custou e está a custar à ACI, só lhe posso dizer que este senhor nunca mais lá põe os pés enquanto eu tiver no meu juízo perfeito.
— Mas que bela história, Sr. Melga Santos — retorquiu Xica. — Nem os filmes de Hollywood conseguiram até hoje ter melhor argumento. Só mesmo o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS para divulgar em primeira mão os grandes acontecimentos que vão marcando este país. Mas já agora, o Dr. Analfa Beto, da Liga do Rodosférico ainda não disse nada.
— Bem, eu de facto nem sei se deva dizer alguma coisa — disse Dr. Analfa Beto — tal a gravidade destas situações. Sabe que, se estas situações a deixam completamente apalermada, então quando ouvir o que eu tenho para contar é capaz de lhe dar qualquer coisa feia.
— Conte, conte e rapidamente, que estou em pulgas para saber tudo, tudinho — afirmou Xica completamente hilariante com a situação.
— Bom, então cá vai. — disse Dr. Analfa Beto — Esse jogador de quem se fala começou a levantar suspeitas desde muito cedo. Tem um corpo franzino, cara de palerma, e portanto a sua força tinha de vir de alguma substância proibida, naturalmente. Estivemos atentos ao assunto e descobrimos que antes de cada treino ou jogo, o indivíduo abria uma lata e comia o seu conteúdo de uma só vez. Depois de analisarmos a lata descobrimos que se tratava de espinafres...
— Espinafres? — quase que gritou Xica — Está-me a dizer que o Sr Popeie dopava-se com espinafres? Mas isso é gravíssimo, espinafres só se deve utilizar na sopa, não é verdade?
—Bem, vamos lá ver uma coisa... — continuou Dr. Analfa Beto — os espinafres não são uma substância proibida. Nunca aconteceu alguém dopar-se com espinafres. E aí é que reside o busílis da questão. Não sendo uma substância proibida, decidimos experimentar em toda a equipa. Todos tomaram espinafres e o resultado foi a ACI perder três jogos seguidos por falta de comparência, porque a diarreia era tanta, tanta, que os rapazes não conseguiam ficar trinta segundos longe da sanita. Foi assim que a ACI desceu de divisão, um prejuízo enorme para quem tinha investido forte e feio para ganhar tudo o que havia para ganhar, nomeadamente a Taça dos Empreiteiros, o troféu mais importante da Liga do Rodosférico. Tudo isto é muito estranho, e é claro que não queremos divulgar esta situação, porque as pessoas não iriam compreender a nossa incapacidade para deslindar o caso do mistério dos espinafres.
— Como compreendo, Dr. Analfa Beto — disse Xica Fala Barato, irónica. — Só que eu preciso de um final feliz neste programa, e portanto senão quer isto divulgado, o melhor será chegar a acordo com o Sr. Popeie...
— Dona Xica... olha é engraçado esta expressão, Dona Xica — balbuciou Dr. Analfa Beto — faz-me lembrar a canção da Dona Xicaca assustou-se, com o berro, com o berro que o gato deu. MIIIAAAUUU!... Mas, como eu ia dizendo, estamos aqui para resolver tudo isto da forma mais rápida.
— Então, eu preciso que se abracem todos... — começou a falar D. Xica quando foi interrompida por Melga Santos.
— Tem mesmo de ser, D. Xica?
— Absolutamente, Sr. Melga Santos. Vou já mandar colocar o som de fundo. Abracem-se já. — mandou Xica em tom pouco amigável.
Mais uma vez se ouvem bater palmas de forma estonteante, tiradas previamente de uma gravação num estádio de futebol, onde se continuavam a ouvir, agora de forma totalmente nítida, os gritos da mesma claque, embora o texto fosse ligeiramente diferente, mais direccionado para a filha do presidente do clube, que também estava, não com medo de sair do estádio, mas sim cheia de pressa para ir ter com os jogadores: “Que belos olhos que nós temos, são para te comer? Que belo nariz que nós temos, é para te cheirar antes de te comer! Vem ter connosco e manda o teu papá pró cará... caráquistão”.
Nesta altura, Dr. Analfa Beto, Sr. Melga Santos e Sr. Popeie estavam abraçados. Discretamente a equipa de produção tinha colocado um microfone no bigode do Dr. Analfa Beto, pelo que se podia ouvir nitidamente a conversa.
— ...Este gajo podia ao menos tomar banho uma vez por mês não acha, Melga Santos — dizia Dr. Analfa Beto.
— Eh pá, — respondia o Sr. Melga Santos — pelo menos as meias, pelo cheiro que estresandam, não devem ser mudadas há pelo menos dois anos.
— Não tarda nada, se não mudarem de conversa, vocês vão fazer um retiro espiritual á Aldeia do Desespero — retorquia Sr. Popeie — e passem para cá o que me devem...
— É de facto o grande sucesso televisivo do século — animava Xica Fala Barato — as pessoas entram aborrecidas e saem felicíssimas. Não há dúvida que o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS é o grande acontecimento do nosso quotidiano.
— ... eh pá é melhor abraçarmo-nos com os braços para baixo, não se é possível, — continuava o Dr Analfa Beto — porque eu não aguento mais a sovaqueira deste gajo, chiça...
— Se fosse só a sovaqueira ainda, ainda... — disse Sr. Melga Santos — ...e o bafo a bagaço, misturado com o cheiro nauseabundo da comida putrefacta que ele tem entalada entre os dentes há pelo menos cinco anos?
— Ai vão, vão... — ameaçou Popeie.
Xica Fala Barato continuava, com a sua voz estridente, a falar do sucesso do programa, uma vez que tinha recebido indicação da produção que o CURRAL DOS ATRASADOS MENTAIS tinha sido o programa mais visto nessa noite, ultrapassando todas as televisões concorrentes. Enquanto as legendas de despedida já iam aparecendo, nomeadamente o patrocínio da pomada para os calos, Xica aproveitava e ia-se despindo, perdão, despedindo calorosamente, ainda a pensar no Príncipe Encantado e na noite de solidão que iria ter a seguir.
De repente, ouviu-se o abrir de uma lata de espinafres. E a seguir uns gritos e um estardalhaço, ficando quase tudo às escuras. Popeie tinha despachado Melga Santos e Analfa Beto para a Aldeia do Desespero. Depois de cada um atravessar um projector de luz, voaram a grande velocidade em direcção ao famigerado destino. Xica Fala Barato ficou muda, e os seguranças da estação televisiva TDI viram-se gregos para correr com o Sr. Popeie. Mas até esta situação criou ainda mais audiência, por incrível que pareça.
— É assim, — balbuciou Xica Fala Barato, sem saber muito bem o que dizer — não é que as pessoas sejam burras e ignorantes. Está-lhes no sangue gostar de ver disparates destes e programas assim. Ás tantas, depois de um dia de trabalho intenso, não há pachorra para ver a National Geografy, ou o bailado dos não sei das quantas. É capaz de cair melhor coisas que não despertem nada nas pessoas a não ser rirem-se de si próprias, da sua estupidez. Não acham? Para a semana temos a situação mais mediática possível, jornalistas versus políticos, esse coktail molotof social, gerado na promiscuidade dos interesses germinados no poder. Contamos com a vossa assiduidade e o vosso carinho. Então, até para a semana.
A TDI demorou três semanas a conseguir realizar outro “pó talco show”, pois o estúdio ficou bastante danificado. Dr. Analfa Beto continua internado no serviço de politraumatizados do hospital local, embora tenha tido forças para apresentar urgentemente a demissão da Liga do Rodosférico, e o Sr. Melga Santos, como aterrou numa vacaria, não fez outra coisa senão enterrar a cabeça no meio da bosta das vacas e gritar: espinafres não, espinafres não.